A ministra da Justiça quer? | Opinião


Há décadas que lemos manifestos críticos sobre o estado da Justiça, com diagnósticos, propostas de reformas e pactos. Porém, tipicamente falham ao descartar as fases de execução das penas e medidas, precisamente onde mais se jogam a segurança da comunidade, os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos (arguidos, condenados, vítimas e testemunhas). Não é razoável pensar reformar a justiça e ignorar o amplo e complexo sistema de execução penal (adiante sistema), que é formado por três territórios punitivos: penas comunitárias (64%), vigilância electrónica (8%) e prisão (28%).

Lamentavelmente, neste século assistimos à evaporação de qualquer visão política para o sistema, largado ao improviso dos dias. Terá restado apenas a ideia sobre a necessidade de evitar a prisão, cara e pouco eficiente, dada – por esta ordem – por imperativos financeiros e por uma noção de civilização. Este deserto explica a frequente nomeação de lideranças absurdas para o sistema (não é o caso actual), e a impossibilidade de encontrar quem saiba responder a uma questão fundamental: deve o país ter mais ou menos prisão, vigilância electrónica ou penas comunitárias, e qual o respectivo racional político, científico e jurídico.

Alguns retorquirão com as muitas reformas penais. Mas é um erro porque não tivemos mais que meras alterações de articulado. Verdadeiras reformas teriam implicado a demonstração da estratégia, objectivos, custos, metodologia de implementação, estimativa de impactos, metas, financiamento, dotação de recursos humanos e tecnológicos, mecanismos de avaliação de resultados. Como sabemos, entre nós, tudo matéria ficcional.

Ora, a ausência de políticas públicas relativas a funções identitárias e de soberania do Estado é uma falha grave. O sistema fica alimentado por decisões judiciais guiadas por um direito obsoleto que não compreende o século XXI. Assim repetimos o erro do século XX: trabalhar com o direito penal do século anterior.

Façamos o teste. Se houvesse uma verdadeira política criminal, não teríamos hoje um sistema disfuncional e decadente:

  • cujos componentes estão desviados da sua vocação natural: a prisão para o risco elevado, os outros para as gamas de riscos médios.
  • burocrático, descentrado da reabilitação que é a sua missão essencial
  • com carências tecnológicas e de técnicos que excedem a imaginação, especialmente nos sub-sistemas não prisionais, onde estão 72% dos casos
  • com sobrecarga prisional – o sector prisional é 25% maior do que na Europa se convenciona como saudável (sublinha-se que não há nenhuma falta de vagas nas prisões, há é excesso de presos), em parte devido a um tempo médio de encarceramento três vezes superior à média europeia
  • com sobrecarga no sector das penas comunitárias devido a intervenções demasiado longas (nas penas suspensas) e ao excesso de casos de baixo risco (que já deveriam ter sido municipalizados)
  • refém de um modelo de segurança prisional maximalista, disfuncional, nas mãos de uma classe profissional com um peso desproporcional

Este quadro gera fenómenos sistémicos extremos como o esmagamento das penas comunitárias pelo minoritário (embora excessivo) sector prisional, exaustão generalizada, e incapacidade de se auto-regeneração.

Não admirará, portanto, que surjam episódios de ruptura catastrófica na actividade regular (exemplo: a pitoresca fuga de Vale de Judeus), ou que exista uma incapacidade estrutural de equacionar aspectos funcionais e éticos face ao futuro digital.

E soluções? Haverá as fantasiosas e ineficazes, e as inovadoras. Nas primeiras, destaque para a privatização serviços (ver o imenso desastre inglês), a panaceia tecnológica, ou a adopção de agendas carcerárias (contra a tradição política e jurídica). Nas segundas, porventura menos caras, haverá que refundar o sistema, preparando-o para o século XXI, ou seja:

  • a jusante, reformular cuidadosamente a arquitectura penal, abandonar a prisão como paradigma da pena e a dicotomia prisão-liberdade (uma concepção binária das penas ultrapassada)
  • encarar a vigilância electrónica como solução penal intermédia e colocar os três territórios punitivos em pé de igualdade e complementaridade sistémica
  • desenhar serviços modernos e colaborativos, com financiamento e recursos adequados
  • usar modelos de intervenção centrados na reabilitação e prevenção da reincidência.

É pertinente perguntar como o fazer. Há uma única resposta: usar uma metodologia participativa que envolva a sociedade civil, a universidade, a comunidade judiciária, e o que resta de inteligência e saber dos serviços do sistema após 25 anos devastadores.

A janela de oportunidade para o fazer minimamente bem é estreitíssima. Haverá governo que se disponha?



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