Carteiras de luxo são produzidas na Europa às custas da desflorestação da Amazónia | Brasil


As cadeias de abastecimento que fornecem couro para carteiras de luxo estão ligadas à pecuária ilegal na floresta amazónica, no Brasil, denuncia um relatório da organização não-governamental Earthsight. O documento mostra como a criação de gado no estado brasileiro do Pará – onde decorrerá em Novembro a Cimeira do Clima (COP30) – está associada à desflorestação ilícita e à ocupação de territórios indígenas.

A partir de uma análise de diferentes fontes documentais, como registos de exportação, dados do sector pecuário brasileiro, imagens de satélite, entrevistas e informações recolhidas no terreno, a Earthsight afirma ter conectado diferentes pontos da cadeia de produção que ligam a marca de carteiras Coach à desflorestação ilegal da Amazónia. “O agro-negócio é o principal culpado”, lê-se no relatório divulgado segunda-feira.

Segundo a página da Coach, a marca de produtos de couro “foi fundada em 1941 como uma empresa familiar” em Nova Iorque. A Earthsight observa que a Coach, hoje detida pela multinacional Tapestry, se posiciona agora no mercado de luxo como uma marca focada na sustentabilidade e no consumo ético. Contudo, sublinha o relatório, “esta nova imagem esconde uma verdade obscura”, uma vez que os fornecedores indirectos da marca estão ligados a práticas agrárias ilegais e a violações de áreas demarcadas do Território Indígena Apyterewa.

Contactada pelo Azul, a Tapestry reconhece numa nota que “o sistema de rastreabilidade das matérias-primas no Brasil é complexo e imperfeito”, mas garantes estar a “trabalhar para fazer parte da solução” e aprimorar a rastreabilidade e a transparência através de programas específicos. A multinacional frisa ainda que recorre apenas a uma “pequena proporção de couro proveniente do Brasil (menos de 10% do couro total)”.

“Lavagem de gado”

Ao analisar a cadeia de abastecimento da Coach, o relatório expõe elos entre a marca e a empresa brasileira Frigol. Esta distribuidora de carne “comprou gado criado em áreas ilegalmente desmatadas e também ‘lavou gado’ criado dentro do Território Indígena Apyterewa”, afirma a Earthsight.

A prática de “lavagem de gado” consiste em transportar vacas criadas em zonas proibidas para quintas que estão legalizadas, operação que permite “apagar o passado” dos animais antes de estes serem vendidos ao matadouro.

O Azul contactou o departamento de comunicação da Frigol, que nega a compra de gado criado ilegalmente em terras indígenas. Antes de concluir qualquer negociação, um dos critérios avaliados pela empresa, através de mapa georreferenciado, com base no Cadastro Ambiental Rural, é se a propriedade possui sobreposição com a Terra Indígena em situação declarada ou fase mais avançada do processo”, lê-se numa nota da Frigol, que garante ter a sustentabilidade no centro do seu modelo de negócio.

“A Coach não apresentou nenhuma evidência que sugira que tenha algum sistema em vigor para evitar tais riscos e, como resultado, as suas cadeias de abastecimento correm o risco de contaminação. A Coach não respondeu a vários pedidos de comentários sobre a investigação da Earthsight”, refere o relatório intitulado O preço oculto do luxo: o custo das carteiras de luxo europeias para a floresta amazónica​.

A elaboração do relatório da Earthsight também recorreu à análise de processos que ainda estão a correr nos tribunais. “Após uma extensa investigação envolvendo buscas em propriedades, análises de títulos de terras e registos bancários, o Ministério Público brasileiro constatou que, de 2012 a 2022, 47.200 cabeças de gado foram criadas ilegalmente dentro da [reserva] Apyterewa, no Pará. O Ministério Público Federal moveu acções civis contra 33 criadores e duas empresas acusadas de comprar gado de fazendas dentro do Território [Indígena Apyterewa]”, refere o documento.

A Earthsight afirma ter examinado dados relativos aos criadores de gado visados pelas acções judiciais e descoberto que, “entre 2020 e 2023, mais de 40% deles forneceram gado às fábricas da Frigol no Pará”. A empresa brasileira “é uma das cinco maiores frigoríficas do Brasil, com capacidade para abater 2400 cabeças de gado por dia”.

Dos matadouros saem não só carne bovina, mas também couro para ser tratado e usado em acessórios de moda. “Dados sobre o sector pecuário brasileiro mostram que criadores do Pará venderam mais de 17 mil cabeças de gado à Frigol durante esse período, o suficiente para produzir 425 toneladas de couro”, refere o mesmo documento.

Do Pará para a Europa

O maior exportador de couro do Pará para a Europa é a Durlicouros, “uma fábrica de curtumes abastecida pela Frigol”, ainda segundo o relatório. Entre 2020 e 2023, a Durlicouros exportou mais de 14.700 toneladas de couro para a Itália, sendo que quase 25% desse total foi comprado por duas unidades fabris que fornecem couro não só para a Coach, mas também para outras marcas de luxo, refere a Earthsight.

Contactado pelo Azul, o gabinete de comunicação da Durlicouros reagiu garantindo um “compromisso com a rastreabilidade e a compra responsável de couro”, seguindo “rigorosamente as leis brasileiras e os princípios de compra responsável”. Destacando o facto de todas as unidades da Durlicouros possuírem certificação do Leather Working Group, a empresa remete para a Frigol quaisquer esclarecimentos relacionados com a empresa de distribuição de carne que, segundo o relatório, fornece peles animais para a Durlicouros.

A Earthsight sublinha que, por si só, a certificação atribuída Leather Working Group às fábricas de couro italianas não é uma garantia de produtos livres de práticas ilegais. O relatório descreve “falhas do organismo de certificação em garantir cadeias de abastecimento de couro sustentáveis”: ao não obrigar a rastreabilidade até às explorações agrícolas, a Leather Working Group pode estar a fechar os olhos para abusos ambientais e dos direitos humanos que ocorrem nas propriedades onde os animais são criados.

Entre 2001 e 2024, o Pará testemunhou a maior a maior perda de cobertura florestal de todos os estados brasileiros, totalizando 18,6 milhões de hectares de floresta tropical destruída – uma área que corresponde a quase duas vezes a área de Portugal. Na maior parte das vezes, árvores são abatidas para libertar espaço para a criação e alimentação de gado. Apesar de o ritmo de desflorestação ter vindo a abrandar nos últimos anos, “a pecuária ilegal persiste”, refere o relatório, invadindo territórios indígenas demarcados e “alimentando conflitos e abusos de direitos humanos”.

Lei da Desflorestação

Para a eurodeputada francesa Marie Toussaint, vice-presidente do Grupo dos Verdes, o relatório da Earthsight é “oportuno”, pois revela que “mesmo as grandes casas de moda europeias correm o risco de estar expostas à destruição da Amazónia”.

“Enquanto a direita e a extrema-direita procuram enfraquecer a regulamentação europeia contra a desflorestação, este trabalho lembra-nos de forma contundente porque é que esta lei é essencial para proteger os direitos humanos e os ecossistemas. Temos de estabelecer a regulamentação na íntegra e rapidamente, para pôr fim a esta cumplicidade silenciosa entre o consumo europeu e a desflorestação”, afirma Marie Toussaint, citada numa nota da Earthsight.

A lei europeia da desflorestação, adiada em um ano, pretende proibir a entrada no mercado da União Europeia de matérias-primas que tenham sido produzidas ilegalmente ou em terras desflorestadas após 31 de Dezembro de 2020, incluindo o couro.

Para cumprir o novo regulamento, as empresas da União Europeia terão de realizar uma diligência prévia para provar que os seus produtos não são originários de terras desflorestadas e foram fabricados em conformidade com as leis do país produtor.



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