Feminismo, belicismo e lágrimas de crocodilo | Opinião


Quando o Ocidente decide fazer guerra ao Levante, lá surgem as habituais (falsas) preocupações com as mulheres muçulmanas, com o argumento de que serão todas obrigadas a usar o véu islâmico, entre outros. Naturalmente, como feminista radical, sou contra qualquer obrigação imposta à mulher (ou a quem quer que seja) de se vestir de uma ou certa forma (salvo os mínimos de civismo exigidos em público). Mas sou, também, contra qualquer proibição dirigida à mulher (ou a quem quer que seja) de se vestir como entender (salvo os mínimos de civismo exigidos em público). E é aqui que surge uma cisão não remendável entre mim e a maioria das feministas liberais do Ocidente (as que se afirmam feministas sem analisar os contextos sociais e económicos vigentes ou ponderar a interseccionalidade, é neste sentido que recorro à expressão).

Em 2017, enquanto contribuidora para a Capazes (entretanto já extinta), quando a França, proibindo o uso do véu islâmico em público, tolerava que a sua polícia arrancasse, em público, o véu a mulheres muçulmanas, estive coerentemente do lado da liberdade que estas mulheres devem ter de usar o véu (aceito a proibição do véu integral em certos espaços públicos, de outro modo as mulheres não participam ativa e igualitariamente das normais interações ou vida social). Porque, por muito que certas feministas não queiram aceitar, há muitas mulheres muçulmanas (provavelmente, a larga maioria) que escolhem livremente usar o véu.

Enquanto muitas feministas mais conservadoras se recusam a acreditar que existem mulheres que escolhem, livremente, prostituir-se (não serem prostituídas, mas prostituir-se), as feministas liberais têm a mesma dificuldade em acreditar que existem mulheres que escolhem, livremente, usar o véu islâmico. Curiosamente, porém, estas mesmas feministas liberais já não encontram dificuldades em acreditar que há mulheres ocidentais que escolhem prostituir-se… E também não passam um atestado de menoridade integral às mulheres católicas que, livremente, escolhem ser freiras e, portanto, usar o véu e o hábito para o resto da vida.

E também não as vejo tão preocupadas com as mulheres judaicas ortodoxas (cujas regras são extremamente semelhantes às do Islão para as mulheres, pois seguem as mesmas bases religiosas) ou ultraortodoxas (estas últimas, além de tratarem da casa e dos filhos, trabalham para sustentar as famílias, já que os homens são destinados apenas ao estudo dos textos religiosos) que, uma vez casadas, devem rapar o cabelo e usar peruca ou lenço para o resto da vida, devendo também vestir-se modestamente, ou seja, taparem-se. Pelo contrário, têm sido feitos esforços para “humanizar” estas comunidades (como se não fossemos todos humanos, independentemente das nossas crenças ou opções de vestimenta), face aos esforços omnipresentes de desumanizar as comunidades muçulmanas (ortodoxas, ou não, já que, na maioria das representações da ficção de produção ocidental, qualquer semelhança com a realidade é praticamente inexistente).

Curiosamente, lá está, a preocupação destas feministas liberais do Ocidente coincide exatamente com os interesses geoestratégicos e económicos dos países onde vivem, e o nível de indignação acompanha geralmente o nível de intervenção agressiva nos países onde estas mulheres muçulmanas, que as outras, na sua condescendência, menorizam, vivem (ou tentam viver, entre as bombas, os bloqueios e as sanções económicas). Indignação que raramente se manifesta quando estas mesmas mulheres são massacradas pelos exércitos israelita ou norte-americano, com o aval da União Europeia.

Estes assuntos são intrinsecamente complexos, obviamente. Qualquer conversa sobre liberdade e autodeterminação é, por natureza, difícil. Até que ponto é que podemos falar da liberdade que uma mulher tem de se prostituir numa sociedade capitalista? Num contexto onde quem não tem dinheiro não come, não vive, como já escrevi aqui, esta liberdade é, muitas vezes, aparente. É a liberdade entre viver e sobreviver, entre manter os filhos ou entregá-los ao Estado, entre estudar ou passar o resto da vida em trabalhos precários e exploratórios, com salários abaixo do nível mínimo da dignidade humana.

Até que ponto é que podemos falar em liberdade de usar o véu islâmico em culturas repressivas em que – mesmo não havendo uma imposição legal – existe uma forte pressão social, cultural, religiosa, familiar? Pode ser a escolha entre ser aceite pela família e pela comunidade, ou viver ostracizada, naturalmente.

Até que ponto é que podemos falar de liberdade de escolha da mulher que se submete regularmente a intervenções cirúrgicas plásticas numa cultura em que a mulher é, ainda e essencialmente, valorizada pela sua beleza física aos olhos do homem?

E assim por diante. Falar de liberdade e autodeterminação em sociedades imperfeitas – para lá do espectro da filosofia e do idealismo, ou da neurologia – é falar de mínimos de espaço de opção. Reconhecemos que a mulher é livre de se prostituir, não porque essa liberdade pura exista – a liberdade de escolher um de múltiplos caminhos efetivamente possíveis e igualmente acessíveis a quem está a escolher –, basta que não esteja a ser obrigada por alguém, controlada, ameaçada. O mesmo critério tem de ser aplicado aos restantes exemplos.

E, na maioria dos casos, as mulheres que usam o véu – principalmente em países ocidentais, mas também em Marrocos, na Tunísia, no Egito, na Turquia, nos territórios ocupados da Palestina (e já visitei todos estes países) – não estão a ser obrigadas por alguém, nem controladas, nem ameaçadas. Sei que assim é por causa do meu trabalho na ECRI (Comissão Europeia contra o Racismo e a Intolerância, do Conselho da Europa), onde estive entre 2018 e 2023. Sei que assim é porque conheço algumas destas mulheres, converso com elas, já fui às suas casas, conheci as suas famílias. Vi mães que escolhem usar o véu e apoiam as suas filhas que escolhem não o usar. Vi mães mais seculares que apoiam a escolha das suas filhas no uso do véu. E todas as variantes possíveis. Para a mulher muçulmana, em regra, a decisão de usar o véu é uma decisão íntima de fé, uma afirmação de identidade cultural, e, até, infelizmente, em muitos casos, uma reação de protesto contra o colonialismo e as intervenções agressivas do Ocidente nos seus países.

Em casos extremos, como no Afeganistão, embora não exista uma obrigação legal expressa do uso do véu, existem imposições das chamadas “autoridades de facto”, que têm levado a repressão nas ruas e detenções (ver o mais recente relatório da ONU, aqui), mas raramente a imprensa ocidental dá voz às críticas provenientes do Islão ao fanatismo dos taliban (que são muitas e diversas). No Irão, o Código Penal impõe o uso da hijab, embora tenha havido períodos distintos de maior ou menor tolerância ou aplicação da lei, e, recentemente, esteja suspensa a sua aplicação. No Irão, as mulheres podem estudar nos mesmos termos dos homens (e trabalhar), já no Afeganistão é hoje proibida a educação das mulheres a partir de certo nível. Tudo isto é condenável, deve ser discutido e combatido. Com a consciência de que compete aos afegãos e aos iranianos lutar pela sua liberdade – cabe-nos ajudar quando e como solicitado, e apoiar movimentos de resistência ou que promovam os direitos humanos – como a qualquer outro povo. Se Portugal viesse agora a proibir o acesso à contraceção, certamente não gostaríamos de ser bombardeados até ao regresso à racionalidade democrática…

Obviamente, não é bombardeando estes países que se alcança a pacificação e normalização das suas relações sociais e políticas, interna ou externamente. Quando sabemos, tal como sabíamos no que respeita ao Iraque, que o Irão não está prestes – nem perto – de criar armas nucleares. Aliás, sempre o saberíamos pelo facto de o Irão estar a ser atacado pelos Estados Unidos e por Israel. Se o Irão tivesse, de facto, armas nucleares (ou estivesse muito perto de as produzir a um nível ameaçador) não estaria a ser bombardeado, como sucede com a Rússia, a China, o Paquistão ou a Coreia do Norte, que têm, de certeza, armas nucleares, estaríamos ainda na via diplomática.

A história tem-nos demonstrado que as intervenções agressivas ocidentais conduzem a reações mais extremas e a retrocessos de secularismo e liberdade nos países afetados (ou mesmo a verdadeiras “corridas nucleares”). E se sabemos que a violência externa tem um efeito contraproducente – pois é através da diplomacia, das trocas culturais, da cooperação e compreensão mútua que se alcançam progressos estáveis – e ainda assim, no Ocidente, insistimos em apoiar o belicismo norte-americano e israelita contra estes países, será que a nossa preocupação é realmente humanitária?

Quase todos compreendemos que não é com a proibição legal (agressiva, repressiva) do aborto que se diminuem as interrupções da gravidez, se protege a mulher grávida, ou a criança (ver os dados estatísticos que o comprovam aqui e aqui). Será assim tão difícil compreender o mesmo no que respeita à imposição forçada dos “valores europeus”? E que valores europeus são esses, num momento em que a União Europeia suspendeu o respeito pelo Direito Internacional Humanitário e está ativamente a apoiar o genocídio na Palestina?

A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico



Source link

Mais Lidas

Veja também