O relativo distanciamento das esquerdas sobre representações das classes populares | Opinião


Os resultados das últimas eleições não são alheios às políticas de austeridade desde o tempo do governo de Passos Coelho/Paulo Portas até aos governos do PS que, com a obsessão do défice e da diminuição da dívida pública, foi demasiado subserviente às diretrizes de Bruxelas, provocando nas classes populares um crescente descontentamento e ressentimento, quando não raiva profunda, nomeadamente ao seu Governo.

Se, em 2015, o BE e o PCP/PEV entenderam e bem, juntamente com o PS, inviabilizar o governo do PSD/CDS com maioria relativa para reverter os danos infligidos pela política austeritária da troika levada a cabo pelo PSD/CDS, nessa altura António Costa se prestou a operacionalizar a ‘geringonça’ com o BE e PCP/PEV, porque era a única maneira de formar governo. Se é certo que o PS conseguiu, pela via de negociações e acordos em separado ora com o BE, ora com o PCP/PEV, ter a durabilidade de uma legislatura relativamente bem sucedida, a partir daí veio ao de cima a natureza do PS não tanto como partido social-democrata, mas mais como partido gestor de políticas macroeconómicas do neoliberalismo, visando, no caso português, a diminuição cega da dívida pública em detrimento do investimento público e das respetivas áreas do Estado social tais como a saúde, a educação, os transportes e, sobretudo, a habitação.

Perante a proposta de orçamento para 2021, enquanto o BE – que se declarara disponível a integrar (com ministeriáveis sob o lema “estamos prontos”) o novo Governo do PS com maioria relativa –, perante a recusa do PS em aceitar suas propostas, nomeadamente em relação ao SNS, chumbou o orçamento, o PCP/PEV, apesar das críticas ao orçamento do PS, viabilizou-o com a sua abstenção. Porém, no orçamento para 2022, o facto de o PCP/PEV e o BE, não obstante votarem amiúde no mesmo sentido sobre as mais diversas matérias, não interagirem em termos políticos entre si e se avaliarem inclusive como concorrentes no campo da esquerda, fez com que cada um não quisesse ficar associado às políticas de inspiração neoliberal do PS, acabando também o PCP/PEV, juntamente com o BE, por chumbar o orçamento para 2022.

Esta decisão, sem ter auscultado devidamente as bases dos respetivos partidos nem aferido o pulsar das classes populares e suas representações sociais sobre quais as causas das situações de degradação social (desemprego, precariedade, pobreza, baixos salários, deficitários serviços públicos, nomeadamente na saúde e na habitação), possibilitou a dissolução da Assembleia da República pelo Presidente da República. Convocadas novas eleições, o PS, para sua própria surpresa, viria a alcançar a maioria absoluta, arredando assim praticamente a influência do BE e do PCP/PEV na esfera parlamentar.

As medidas mais lesivas por parte do Governo, conjugadas com casos de suspeição de membros do Governo e/ou doutras figuras do PS, foram descredibilizando o Governo do PS, o que foi habilmente aproveitado pela direita, por via dum processo de lawfare instaurado pelo Ministério Público, acrescentando este um parágrafo em que colocava não como arguido, mas como suspeito, o primeiro-ministro António Costa. Este processo, que se sabia conduzir à demissão de António Costa, viria a ser complacentemente aceite pelo Presidente da República, que, dada a base parlamentar maioritária do PS, nem sequer colocou a possibilidade de substituir simplesmente o primeiro-ministro, a que não terá sido estranha a tentativa de o Presidente ‘reconciliar-se’ com o seu original partido de pertença, o PSD.

Em 2024, o superavit primário que o Governo do PS alcançou virar-se-ia contra si nas eleições, em que a derrota do PS permitiu ao PSD/CDS responder parcialmente a justas reivindicações de várias classes do setor público (professores/as, oficiais de justiça, forças de segurança, bombeiros/as), em clara propaganda eleitoral para eventuais novas eleições e, assim, aparentar ‘generosidades’ que o PS de modo míope recusou, defraudando este os eleitores/as que lhe deram maioria absoluta. Tal viria a ter repercussões eleitorais negativas para o PS nas eleições de 2024 e, mais ainda, nas recentes de 18 de Maio de 2025.

Porém, o mais problemático foi a penalização dos partidos à esquerda do PS, a saber, o PCP/PEV e, sobretudo, o BE, que, não obstante terem propostas alternativas não só à extrema-direita e à direita como ao próprio PS, não tiveram o eco eleitoral necessário por falta de um maior trabalho de base junto das classes mais desprovidas. Estas, por sua vez, evidenciando uma baixíssima consciência de classe, foram mais permeáveis não só à ideologia meritocrática (presente no PSD e, sobretudo, na IL) como, por manipulação dos media e das redes sociais, aos slogans populistas e demagógicos do Chega.

Parte considerável dos eleitores/as, influenciados por falsas narrativas, assumiu como responsáveis da sua situação de privação e sentimento de insegurança não os grupos económicos e financeiros e os governos de orientação conservadora e neoliberal, mas os ciganos – vistos indevidamente como estrangeiros – e os imigrantes, sobretudo negros e asiáticos que, não obstante a proximidade em termos de pertença de classe, são considerados ‘intrusos’, ‘outsiders’, ‘aproveitadores’, tornando-se os bodes expiatórios da sua situação de privação e pobreza, na medida em que uns e outros seriam alegadamente uma ‘ameaça’, “confiscando-lhes” os trabalhos, as casas, senão mesmo as suas mulheres…

Em diversos estudos e publicações é evidenciado com inúmeros dados de ordem quantitativa e qualitativa que, não obstante a retórica oficial de Portugal como país multirracial e multicultural proclamada por Presidentes e sucessivos governos e a sua interiorização por grande parte da população, as práticas e representações assumidas pelas instituições revelam formas de racismo institucional e, por vezes, de segregação socio-espacial e étnica. Por sua vez, grande parte dos inquiridos/os e entrevistados/as, consciente ou inconscientemente, exprimem preconceitos e atitudes xenófobas e racistas, quer de modo flagrante e brutal (entre os menos instruídos), quer de modo subtil (entre os mais instruídos) para com ciganos e imigrantes, sendo de referir trabalhos meus sobre Sina Social Cigana (2014), Africanos dos PALOP no distrito de Braga (2018) e Etnicidade e Racismo (2022) e outros como o de Cabecinhas (2007), Mendes e Magano (2014) e, sobretudo, o estudo da equipa de Jorge Vala sobre racismo (1999), que aponta para Portugal 52,9% de racismo ‘biológico’ e 54% de racismo ‘cultural’, uma média superior à europeia, com 29,2% e 44%, respetivamente.

Tal não significa que as pessoas, nomeadamente as pertencentes às classes trabalhadoras e populares, sejam racistas por natureza, mas que os seus preconceitos, representações e posicionamentos, para além de expressão de revolta perante situações de insegurança, são produto da influência de ideologias de supremacia branca e colonial provindas do passado, nomeadamente salazarista, e que ainda perduram e são alimentadas por partidos racistas e xenófobos como o Chega e o Ergue-te e outros grupos de cariz neonazi como o 1143, Blood & Honour e o Movimento Armilar Lusitano, com ações concretas.

Os comportamentos de racismo e xenofobia, inclusive entre as classes populares, em regra não reconhecidos pelas esquerdas em Portugal mas com repercussões eleitorais mais recentes, estão em linha com resultados de outros países europeus, tal como o confirmam sondagens e inquéritos levados a cabo pelo Eurobarómetro, a Agência dos Direitos Fundamentais e a Rede Europeia contra o Racismo. É hora de as esquerdas despertarem e organizarem de modo conjugado estratégias de consciencialização das classes populares e plataformas de ação e luta contra a reemergência do racismo, da xenofobia e das formas de neofascismo.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico



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