Por trilhos, estradas e serras de uma terra que nos chama de volta | Reportagem


Há quem lhe chame coincidência. Outros, destino. A verdade é que Leonor Guimarães já estava decidida a mudar-se para a quinta onde passava temporadas desde a infância, em Ponte da Barca, e a ajudar o pai na recuperação da casa secular, que foi sendo passada de geração em geração. “Tinha saudades disto”, confessa.

Depois de uma vida entre Lisboa e o mundo, queria voltar para aquele recanto sossegado nas barbas do rio Lima, à sombra da Serra Amarela. Um dia, a vasculhar nos armários antigos que quase nunca abriam, deram com um baú cheio de cartas assinadas por um tal de Cypriano Joseph da Rocha, um antepassado desconhecido, cuja história viria a moldar o projecto da família para a Casa da Quintela, a que passaram a chamar Quinta de Cypriano.

“Até àquela data não sabíamos que ele existia”, comenta Leonor. A pesquisa que se seguiu revelou que Cypriano foi o primeiro proprietário da quinta, datada de 1696. Era um ilustre barquense, enviado para o Brasil pelo rei D. João V para ocupar o cargo de juiz e ouvidor, e durante os 14 anos passados do outro lado do Atlântico escreveu regularmente à sua mulher, Maria Luísa, que ficou encarregada da propriedade. “Dava instruções de como fazer o vinho, como lavar o lagar, e até pedia à mulher para lhe enviar vinho, lampreia e salpicão”, conta Leonor.

Na primeira correspondência, de 10 de Junho de 1729, fez-lhe um pedido que ecoou pelo tempo e ainda hoje a família faz por cumprir: “Trata bem das nossas vinhas.” Alheios a que a produção de uva na propriedade remontava já ao século XVIII, o sentido de missão em dar continuidade à vinha e ao vinho vem do legado deixado por um membro mais recente da família.



A casta loureiro é predominante nos 6,5 hectares de vinha da Quinta de Cypriano. A parte da produção que não é vendida à Adega Cooperativa de Ponte da Barca tem como destino o branco Vinhas de Cypriano e um curtimenta.
Maria João Gala



“Tinha saudades disto”, confessa Leonor Guimarães, que, após uma vida entre Lisboa e o mundo, voltou para a quinta onde passava temporadas desde a infância, que se tornou projecto de família.
Maria João Gala

“O meu bisavô foi o sócio número um da Adega Cooperativa de Ponte da Barca, e estas vinhas eram dele”, partilha Leonor, apontando para os 6,5 hectares de loureiro (e um pouco de vinhão) que se estendem ao longo da margem do rio, e que foram sendo replantados pelo pai António Andresen Guimarães, a partir de 2005.

Ainda vendem a maioria das uvas à adega, mas uma parte fica agora reservada para os seus próprios vinhos. O primeiro Vinhas de Cypriano Loureiro nasceu em 2017, ainda na cooperativa. Só três anos depois é que Leonor voltou a aventurar-se na vinificação, dessa vez já nos lagares de quinta, com um loureiro de curtimenta, “como Cypriano relatava nas suas cartas”, realça, e um vinhão. Ambos com orientação do enólogo Abel Codesso.

A vindima passou a ser uma espécie de reunião anual da família Andresen Guimarães. Todos ajudam na produção. São lotes pequenos, mas fruto de momentos especiais, que guardam na memória e escrevem mais uma linha na longa história da família.

As colheitas de 2023 serão lançadas em breve. O tempo também faz parte da receita, e é com tempo que eles se devem desfrutar, preferencialmente no jardim vestido de roseiras em flor, a contemplar o quadro bucólico que se abre em frente: o vinhedo verde e viçoso, e um vislumbre do rio amparado pelas montanhas, cobertos pela luz rasante do entardecer.

Tem-se vista semelhante da piscina e das seis suítes inauguradas em Novembro. As antigas cortes dos animais foram transformadas em quartos elegantes e confortáveis, que tentam replicar o ambiente da casa do século XVIII, num primeiro passo da aposta no enoturismo, que em breve irá trazer também uma nova sala de provas e de pequenos-almoços.



Quinta de Cypriano, Ponte da Barca
Maria João Gala


Esvaziar os ouvidos de ruído

Dada a proximidade com o Parque Nacional da Peneda-Gerês, e sendo Leonor uma amante da natureza, só faria sentido enriquecer a oferta de vinho e alojamento com parcerias com empresas locais para levar os hóspedes a explorar a região. Seja a deslizar de kayak no rio Lima, a fazer caminhadas na serra, ou em tours de 4×4 pelas paisagens do parque. É isso mesmo que fazemos, à boleia da North Land, e da sua fundadora Cláudia Fernandes, também ela uma apaixonada pelo território.

Os percursos são feitos à medida, com duração de meio dia ou dia inteiro, para ir com calma e desfrutar da envolvência. “Gostamos que as nossas tours tenham um cariz mais interpretativo, e com muito respeito pela natureza”, diz.

A ponte sobre o rio Tamente, na sua derradeira chegada ao Lima, em Entre-Ambos-os-Rios, assinala a entrada no Parque Nacional. Aprendemos que foi criado há mais de 50 anos, “não só com base nos valores naturais, mas também no património edificado, na cultura e nas tradições das pessoas que permanecem cá e que mantêm este território”, partilha a nossa guia.



Cláudia Fernandes, fundadora da North Land, promove tours de 4×4 pelas paisagens do Parque Nacional da Peneda-Gerês.
Maria João Gala

A encosta da serra Amarela cobre-se de um manto de vegetação verde e frondosa, e à beira da estrada, que tem como destino a aldeia da Ermida, um grupo prepara-se para a descida de canyoning na ribeira de Carcerelha, afluente do rio Froufe, que por sua vez desemboca no Lima.

Mais à frente, o já tranquilo passeio abranda mais um pouco, para deixar passar um par de vacas a pastar na berma. Os ruminantes multiplicam-se na chegada ao miradouro da Ermida, num planalto que em dias de céu limpo deixa ver o vale do rio Lima, encaixado entre a serra de Soajo e Amarela, com as suas ladeiras pinceladas de amarelo e rosa, pelas giestas, pela urze, pela carqueja. O silêncio retemperador só é interrompido pelo som dos chocalhos, pelo que apetece ficar ali alguns momentos, a esvaziar os ouvidos do ruído da cidade.



Junto a Lindoso esconde-se o Poço da Gola, uma piscina seminatural esculpida pela água no granito, a que o homem juntou um pequeno açude para alimentar um antigo moinho.
Maria João Gala

Antes de seguir para Lindoso, faz-se mais uma paragem para aguçar o apetite de voltar e ir a banhos no Poço da Gola, uma piscina seminatural esculpida pela água no granito, a que o homem juntou um pequeno açude para alimentar um antigo moinho mais abaixo. A importância que os cereais tiveram na subsistência das populações locais torna-se ainda mais evidente olhando para a meia centena de espigueiros em pedra que compõem o postal de Lindoso, com o castelo de fundo.

Do alto das muralhas desse forte de defesa fronteiriça, abre-se uma panorâmica sobre a albufeira do Alto Lindoso. É aqui que o rio Lima, vindo de Espanha, entra por território nacional, sem dar conta de fronteiras.



“Gostamos que as nossas tours tenham um cariz mais interpretativo, e com muito respeito pela natureza”, diz Cláudia Fernandes, da Northland, uma apaixonada pelo território do Parque Nacional da Peneda-Gerês.
Maria João Gala


A Casa do Destro, em frente ao castelo, também tem história de desafiar esses limites, quando ainda eram mais do que linhas num mapa. Mercearia e taberna construída por José Rodrigues em 1950, em pleno Estado Novo, gabava-se de ter produtos que não haviam em mais lado nenhum. O segredo estava no engenho de José, que nos dias de salto, para facilitar o contrabando, convidava os guardas-fiscais para o seu estabelecimento. “Punha-os aí a beber vinhão e a comer um bom presunto, distraía-os”, conta Nuno Rodrigues.

Há dois anos, vindos do Porto, onde fizeram vida, ele e a mulher Goreti Rodrigues, bisneta do fundador da casa, reabriram as portas, apostando em pratos tradicionais, como a posta minhota e o bacalhau à Destro (com migas de broa de milho amarelo). Acompanhados com vinhos da região, em especial os de Ponte da Barca.



Pratos de tradição como a posta minhota são motivos mais do que suficientes para rumar ao restaurante Casa do Destro, que fica diante do castelo de Lindoso.
Maria João Gala



A importância que os cereais tiveram na subsistência da população torna-se evidente olhando para a meia centena de espigueiros em pedra que compõem o postal de Lindoso, com o castelo de fundo.
Maria João Gala

Recarregar baterias

Ao chegar a Ponte da Barca, o rio Lima co-protagoniza um quadro digno de registo, reflectindo a ponte medieval com dez arcos e o casario do centro histórico. Para jusante apreciamos-lhe a frescura ao longo da ecovia – que o acompanha até Ponte de Lima – e do outro lado descobre-se uma bonita zona ribeirinha, com uma praia fluvial para ir a banhos refrescantes nos dias tórridos do Verão no interior minhoto. É vigiada na época balnear e goza de um largo areal, com infra-estruturas de apoio, incluindo um parque de merendas.

Querendo recarregar energias com algo mais consistente, entre a ponte e a praia, tem-se logo ali o Vai à Fava, cuja esplanada abre vista para o rio. Assume-se como “o restaurante alternativo” num panorama que privilegia a cozinha tradicional. Mas na medida em que tenta trazer inovação, também faz por valorizar os produtos locais e ir às raízes da história gastronómica da região.

“Já temos estado a trabalhar com o milho, que é um dos principais produtos aqui da zona, as próprias raças autóctones, como é o caso da barrosã e do porco bísaro. Queremos fazer renascer aquilo que é a história de Ponte da Barca e trazer para o século XX”, explica Rafael Amorim, que tomou as rédeas do restaurante quando decidiu voltar para a sua terra natal, em 2023, depois de outras aventuras na área da restauração e vinhos, em Lisboa e noutras latitudes.



Rafael Amorim tomou as rédeas do restaurante Vai À Fava quando decidiu voltar para Ponte da Barca, em 2023, depois de outras aventuras na área da restauração e vinhos, em Lisboa e noutras latitudes.
Maria João Gala


Uma bruschetta feita com focaccia de fermentação natural, amassada ali mesmo – por vezes com farinha de bolota e cobertura de urtigas, mas desta vez com trigo e sêmola de milho –, inaugura a mesa, dando bom rumo à refeição, que pode inclinar de seguida para ervilhas com presunto, ou croquetes de borrego com chutney de maçã. Nos principais, recomenda-se o naco com arroz caldoso de feijão e grelos, ou algo mais leve, como um arroz de peixe com robalo, que o mar não está assim tão longe – chega-se à lota de Viana do Castelo em meia hora.

A carta também exibe propostas mais fora da caixa, mas enraizadas no território, como o búfalo e o bisonte. “Há registos históricos das duas raças aqui na região e nós estamos a tentar, mais a longo prazo, ter a nossa própria criação”, revela. Para emparelhar com tudo isto, Rafael está a reestruturar a carta de vinhos, ao mesmo tempo que renova a decoração do restaurante e em breve a cozinha, mais focada para trabalhar a lenha e a carvão.

A selecção, como já acontece, irá continuar a dar destaque à região dos Vinhos Verdes, com produtores que não têm medo de fugir à norma. Exemplo disso é a Barcos Wines – Adega de Ponte da Barca e Arcos de Valdevez. “Eles mantiveram a linha clássica, mas também têm lançado muitos vinhos com um perfil completamente diferente”, nota. Vinhos mais complexos, com estágios longos, brancos de curtimenta, pét-nats. O catálogo vai longo.

Antes de seguir caminho, importa dar a devida atenção à tarte basca, feita com requeijão e servida com morangos macerados, pouco doce e leve como se quer no Verão. Daquelas sobremesas que secretamente nunca queremos partilhar.



Os magalhães, pastéis de massa folhada com recheio de mel e nozes, são um dos doces mais populares da Pastelaria Liz, em Ponte da Barca.
Maria João Gala

Em matéria de doces, Ponte da Barca não tem grande tradição, mas entrou para o mapa doceiro há pouco mais de dez anos, quando o pasteleiro Alfredo Pimenta, fundador da Pastelaria Liz, decidiu homenagear o navegador Fernão de Magalhães – que poderá ter nascido nestas terras –, com um doce em forma de barca, de massa folhada e com recheio à base de mel e nozes. Rapidamente se tornou um dos pastéis mais populares da casa, a par das suas queijadas de laranja.

Se o intuito for continuar a descobrir as mesas da vila, numa vertente mais petisqueira, ao final da tarde, quando o calor esmorece e as noites ficam apetecíveis para andar na rua, num desses recantos do centro histórico ganha vida o Põe-te Fino Bistrô. O nome indica, e muito bem, uma tendência cervejeira – entenda-se “fino” por cerveja de pressão –, mas os vinhos também têm aqui lugar, incluindo os da região dos Vinhos Verdes.



Põe-te Fino Bistrô, Ponte da Barca
Maria João Gala


Acompanham as pataniscas, a chouriça assada, a alheira, as tábuas de queijos e enchidos, o caldo verde e as tostas de queijo raclette. Sim, raclette. “Porque é bom”, justifica Damian Pereira. Quis assentar raízes na terra que visitava todos os Verões e abriu com o tio Denis esta taberna.

De França trouxe alguns ingredientes – essencialmente queijos –, mas são as tradições do Minho que lhe enchem o coração. Já fez parte de um grupo folclórico e não poucas vezes agracia os clientes com uma serenata de concertina, que ecoa na noite, pelas ruelas da vila.



A praia fluvial de Ponte da Barca é vigiada na época balnear e goza de um largo areal, com infra-estruturas de apoio, incluindo um parque de merendas.
Maria João Gala

Entre vinhas e o rio

Atravessamos a ponte, rumo a Arcos de Valdevez, para dar um salto à Quinta do Cerqueiral, e às suas vinhas expostas a sul, num anfiteatro que repousa na margem direita do rio Lima. Em meados do século XX, quando o bisavô de Miguel Portela comprou a quinta, regressado da Venezuela, a configuração era bem diferente. A vinha estava limitada à bordadura dos campos e era um complemento às culturas de subsistência.

Aqueles terrenos, como era habitual nas propriedades minhotas, estavam plantados com milho, como comprova a azenha junto ao rio, recentemente recuperada, onde se moíam os cereais. “A azenha servia a aldeia toda”, comenta Miguel, enquanto nos guia pelas vinhas de loureiro até um terraço sobre o rio, com uma mesa em pedra, onde dá a provar os vinhos da casa. Lá em baixo, na margem, entre dois cordões de vinha, passa a Ecovia do Rio Lima, um troço recém-inaugurado que segue dali até Ermelo, ao longo de 15 quilómetros embrenhados na galeria ripícola do Lima.

A reconversão dos terrenos para vinha, há 40 anos, teve o propósito inicial de vender uva para a cooperativa, mas o caminho que a família seguiu foi outro, optando por produzir vinhos com marca própria, marcados pela sua jovialidade, frescura e acidez, em especial o vinhão. “A gastronomia local assim o exige. A lampreia, a cachena, que é uma carne muito gordurosa, a cabidela, o cozido à portuguesa, são comidas que pedem um vinho com mais frescura”, defende o anfitrião.



Miguel Portela é o anfitrião na Quinta da Cerqueiral, em Oliveira (Arcos de Valdevez)
Maria João Gala


O tinto da Quinta do Cerqueiral é presença habitual nas mesas regionais, e muitas vezes quem visita a quinta também já vai com a ideia de prová-lo. “Muitos estrangeiros, norte-americanos principalmente, o que têm mais curiosidade de provar é o tinto, e querem bebê-lo na malga, já vêm informados”, conta Miguel.

A casta vinhão, de carácter forte, será também protagonista de um espumante, uma recente aposta da casa. Resulta da colheita de 2024 e ainda lhe faltam pelo menos três anos de estágio em garrafa. Mais uma razão para voltarmos. Não tivéssemos já provas suficientes de que esta é uma terra que nos chama de volta.


Este artigo foi publicado na edição n.º 16 da revista Singular. A Singular é uma revista do PÚBLICO com o apoio da Comissão de Viticultura da Região dos Vinhos Verdes. A Singular é uma publicação estritamente editorial, concebida, produzida e editada pela redacção do PÚBLICO com total independência e em cumprimento das regras internas para conteúdos apoiados. ​Para saber mais sobre a política de conteúdos apoiados do PÚBLICO, clique aqui.



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