Habitualmente, não escrevo sobre momentos políticos, embora me considere informado e com opinião própria. No entanto, nos últimos meses, assistimos a tantos acontecimentos que prometeram mudanças em quase todos os setores essenciais na vida de qualquer cidadão que quase tornam impossível manter o silêncio. Alguns deles prometem agitar os novos tempos, quer seja no plano nacional que, agora, promete uma nova era na governação e uma reforma profunda do Estado, quer no plano internacional, como as guerras que, à porta da Europa, nos preocupam e nos fazem recuar algumas décadas nas memórias que ficaram gravadas na história, para sempre.
Os muitos assuntos têm enriquecido os espaços noticiosos que, em sucessivos serões e através da nova arte de comentar, que procura explicar-nos, como se fossemos todos ignorantes, os muitos pormenores das decisões e pensamentos dos líderes mundiais que vão sendo conhecidos e que os mesmos comentadores conseguem analisar, ainda que as matérias variem entre a geoestratégia militar, a política internacional de defesa, as diversas táticas, os arsenais de armamento disponíveis em cada “potência”, etc., e temas que se deveriam ter transformado no principal foco da análise como a posição europeia e a sua importância ou, numa prioridade mais nacional, os planos em torno do novo Programa do Governo, sobretudo nas áreas que todos conhecem como as mais sensíveis – a saúde, a sustentabilidade do SNS e da Segurança Social, entre os muitos outros temas que não constam do documento agora aprovado.
Nesses outros, permito-me fazer uma referência especial à implementação do Estatuto do Doente Crónico e do Plano de Ação para as Doenças Raras 2025-2030, à afetação de recursos para a sua execução e a intenção, mesmo que seja apenas isso, de alargar as medidas aos planos europeus que estão a ser desenvolvidos em muitos países da UE. Em França, por exemplo, o 4.º Plano Nacional prevê uma verba de 230 milhões de euros anuais para a reorganização deste setor, considerado como importantíssimo na aplicação de políticas de prevenção, de acompanhamento das pessoas, da saúde pública e referindo o plano como uma ferramenta “para um percurso de cuidados harmonioso e coordenado, com um diagnóstico rápido e um acesso às novas terapias, cuidados de qualidade centrados no doente e muito mais e melhor formação e informação sobre os tratamentos mais recentes para as doenças raras”.
A aposta numa frente interministerial, que envolve vários ministérios importantes, é um conceito já experimentado em Portugal na anterior estratégia. A incapacidade de um acompanhamento na sua execução, a falta de um lobby europeu organizado para a influência política e financeira e os sucessivos adiamentos nas decisões importantes ditaram um atraso de mais de uma década na implementação das novas regras que outros foram criando como modelo.
Enquanto pessoa envolvida diariamente no combate às doenças raras (cerca de 8000) e a todas as suas consequências, independentemente do seu número e do número de pessoas que sofrem com elas se estimar em mais de 300 milhões em todo o mundo, mais de 30 milhões na União Europeia e cerca de 800.000 em Portugal, não posso ficar inferente à falta de ambição que continua a atingir o setor social que atua nesta área, ainda que ele seja considerado como muito importante para a economia, e à incapacidade que o Estado tem revelado para aplicar as medidas de inovação que, ele próprio, afirma como decisivas para o setor da saúde que tanto afeta o sistema de proteção que está em vigor no nosso país.
Inovar significa fazer mudanças e quebrar tradições com as quais o mundo já não é compatível. Para apostarmos na transição digital e na reforma do Estado que nos é prometida pela simplificação de processos e pela sua desburocratização, não podemos ficar à espera que o sistema colapse, continuando a alimentar o problema como se fosse uma guerra entre o que é serviço público ou o que é serviço privado. Quantificando cada um deles, é urgente estabelecer acordos e construir pontes que sejam capazes de resolver o problema. Afinal, ambos devem servir as pessoas.
Todos sabemos que a preparação de alterações legislativas e regulamentares que permitam modificar algumas posições, acomodadas desde há alguns anos, sem qualquer expectativa de mudança que prometa melhores dias para o nosso Serviço Nacional de Saúde, talvez a maior conquista dos últimos 50 anos e o maior bem a conservar e a melhorar, para todos, demora tempo demais. Também sabemos que as pessoas consideradas saudáveis sentem menos a necessidade de tomar medidas. O que, em muitos casos, não conseguimos, sequer, imaginar, é que existem pessoas que esperam muitos anos, quando conseguem, por decisões urgentes que permitiriam aumentar-lhes a qualidade de vida, prevenir o agravamento dos sintomas, serem cuidadas com dignidade e, mesmo assim, diminuindo custos e otimizando respostas das quais as novas gerações seriam as grandes beneficiárias.
As associações de doentes que, ao longo dos anos e depois de muitas reuniões, pedidos de propostas de documentos, criação de grupos de trabalho de pessoas que se envolvem na causa de forma completamente empenhada e gratuita, dando-lhe tudo o que têm, também foram completamente ignoradas no documento que vai orientar a ação do Governo. Terá sido pelas mesmas razões de sempre?
Talvez por isso, não tenham sido feitas promessas.
Talvez por isso, tenha havido pessoas esquecidas.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico