O Estado não tem direito a compelir-me, em matéria estranha ao Estado, a escrever numa ortografia que repugno.
Fernando Pessoa (1888-1935)(…) parecenças com um desejo apaixonado de se desmentir a si próprio.
Robert Musil (1880-1942)
No que ao Acordo Ortográfico de 1990 (AO90) diz respeito, surpreende-me sobremaneira a aceitação acrítica de pessoas ligadas à Ciência e à sua divulgação. Esse silêncio é particularmente incomodativo no caso da “Nota Explicativa do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa”, 1990, único texto, aliás, em que os seus mentores (portugueses e brasileiros) explicitam atabalhoadamente o seu inusitado porquê.
Quero crer que nem sequer o terão lido, pois não seria aceitável que pessoas críticas relativamente a tudo o que contrarie o Conhecimento ou se feche em obstinada ignorância pudessem aceitar ditos “critérios científicos” e “justificações” que raiam o disparate no que a qualquer Conhecimento diz respeito, nomeadamente, o Linguístico.
Este facto aponta, na verdade, para uma lamentável posição, tanto mais que em qualquer Ciência a etimologia intervém activamente, explicando a origem das palavras. Ora a etimologia, vertente cultural da ortografia, é a componente selvaticamente agredida por este AO que devora, por exemplo, toda a consoante surda «c» e «p», justificando o acto fagócito, como uma forma de punir a «teimosia lusitana» e de aliviar «a memória dos alunos».
Realce-se que a Associação Portuguesa de Linguística (APL), em 2005, através da sua presidente, Inês Duarte, entregou, no Instituto Camões, um parecer estrondosamente negativo à implementação do AO 90: “(…) por todas as razões acima aduzidas, a Associação Portuguesa de Linguística recomenda: 1. Que seja de imediato suspenso o processo em curso, até uma reavaliação, em termos de política geral, linguística, cultural e educativa, das vantagens e custos da entrada em vigor do Acordo Ortográfico de 1990. 2. Que, a manter-se o texto actual do Acordo, Portugal não ratifique o Segundo protocolo Modificativo.” Em 2008, aquando da Audição Parlamentar de 7 de Abril (“aplicação e impacto do acordo”), este parecer seria de novo entregue na Assembleia da República, pela então direcção da APL.
Antes de se decretar o que os Portugueses nunca haviam pedido e tinham sistematicamente ignorado, escrevia-se, naturalmente, “acto”, “recepção”, “concepção” ou “retractar”, entre muitos exemplos, vocábulos agora truncados na sua marca etimológica que determinava a abertura da sílaba. Não admira, pois, que esta alteração ao “traje” da palavra tenha prejudicado a sua leitura, dando azo a distorções, escritas e ouvidas. Realce-se os vocábulos “recepção” ou “concepção” que, pelo “critério da pronúncia”, se mantêm assim, no Brasil, alterando-se, em Portugal, para “receção” ou “conceção”, num evidente desmentido da “unidade ortográfica” pretendida. No caso de “retractar”, o equívoco, que toda ortografia pretende eliminar, é notório porque agora tudo é “retratar”. A propósito desta voragem, assiste-se ao absurdo de em exposições bilingues, português-inglês, nos depararmos com a ausência das já referidas consoantes, numa língua românica cuja base é o latim, mas a sua manutenção numa língua germânica que respeita a influência cultural do latim: coleção/collection; projeto/project; refletindo/reflecting; abstrato/abstract; eclético/eclectic, etc.
É comum, em qualquer ciência, a criação de designações, métodos, teorias ou tratamentos com o nome de quem os estudou, criou ou investigou. No caso do AO90, não coube a nenhum linguista a ideia de fazer uma nova reforma ortográfica, mas a um político brasileiro, o presidente José Sarney, que aliciou participantes para uma reunião, no Rio de Janeiro, em 1986, apropriando-se de “matéria estranha ao Estado”. A aventura não correu bem e lembrar-se-ão que ficou temporariamente pelo caminho, com a anedota da eliminação dos acentos nas palavras esdrúxulas.
Caos é a palavra certa, no que à presença do AO diz respeito, e são os próprios alunos, nomeadamente os do 2.º ciclo, que acham “esquisito” igualar a preposição “para” à 3.ª pessoa do sing. do Pres. do Ind. do verbo “parar”, ou a contracção “pelo” ao substantivo “pêlo” (agora sem acento), ou ainda o facto de ser indiferente o uso do acento na 1.ª pessoa do plural do Pret. Perf. para se distinguir da mesma pessoa do Pres. Ind, nos verbos da 1.ª conjugação. Ou seja, na gramática portuguesa, ensina-se que a referida pessoa é acentuada no Pret. Perf., mas «os alunos podem escolher a forma que quiserem», facto que gera naturalmente confusão. Não admira que um aluno, ao exemplificar no texto um Pretérito Perfeito, tenha escolhido um Presente, na pessoa anteriormente referida. Foi também com o argumento da “facultatividade” que um professor (não de Português) interveio numa situação nada relacionada com a ortografia. Uma aluna escreveu: “A mãe avisou-lhe de que não deveria fazer aquilo” – e uma colega sua corrigiu, e bem, para: “A mãe avisou-o de que não deveria fazer aquilo”, ficando, no entanto, ambas a saber que as duas frases estavam correctas!…
Questionam ainda os alunos outras regras difíceis de “encaixar”, como por exemplo a transformação de substantivos próprios em comuns, no caso dos meses ou estações do ano. A leitura das odes de Ricardo Reis, por exemplo, é gravemente atingida por este mal, num desrespeito absoluto pelo significado metafórico das estações do ano, na caracterização clássica da vida humana. Desta forma se impede e anula uma interpretação séria dos poemas do heterónimo pessoano. Sinta o leitor a diferença entre a palavra escrita com maiúscula ou com minúscula, nos seguintes versos do poeta: «Não florescem no Inverno os arvoredos,/ Nem pela Primavera/ Têm branco frio os campos» ou «Não florescem no inverno os arvoredos,/ Nem pela primavera/ Têm branco frio os campos.»
É também surpreendente que as pessoas ligadas à Ciência não se questionem sobre o significado de petições contra o AO, com milhares de assinaturas, ou sobre os 24 em 25 pareceres contrários à implementação do acordo, ou ainda em relação à aleivosia acontecida na Assembleia da República aquando da entrega da ILC-AO (Iniciativa Legislativa de Cidadãos Contra o Acordo Ortográfico) – que, neste momento, tenta salvar em tribunal a possibilidade de um debate sobre esta matéria (ler, a propósito, Nuno Pacheco, “Regresso à Ortografia, agora com um tribunal pelo meio” e o sítio da ILC-AO, em “ILC-AO vs. AR: perguntas frequentes”).
Na verdade, as razões que sustentam a “Nota Explicativa” estão ao nível de outros delírios similares – dignos da melhor teoria da Terra Plana ou dos negacionistas de vacinas e alterações climáticas.
É pena que o espírito crítico de homens e mulheres de Ciência do nosso país, no caso do AO90, continue a primar por um estranho silêncio, “sonolência passiva em que aceitamos tudo o que nos põem à frente.” (Musil)