A vida marginal, entre o anarquismo e o punk, dos trabalhadores sazonais | Fotografia


O ano de 2023 foi de mudança para João Salgueiro Baptista. “Tinha 27, 28 anos”, recorda, em entrevista ao P3. “Decidi abandonar o meu Porto, deixar a minha casa, e tirar algum tempo para viajar.” Graças a um amigo, teve oportunidade de rumar a França para trabalhar na vindima. “Fui com o objectivo de fazer o máximo de dinheiro possível em três semanas. Acabei por ficar três meses.”

É sabido: mudança gera mudança; assim, o fotógrafo natural de Viana do Castelo colheu, em 2025, os frutos das sementes que havia plantado em 2023, quando desenvolveu, sem saber, o projecto fotográfico Saison Floue – recentemente editado e distinguido pelo Prémio Novos Talentos FNAC 2025 (NTF) –, que se debruça sobre a realidade por muitos desconhecida do trabalho sazonal, em França.

“Acabei por fotografar muito mais o entorno do que as condições do trabalho propriamente dito”, elucida. Saison Floue traça, assim, o retrato dos trabalhadores, das “milhares de pessoas de diferentes nacionalidades, origens, estilos de vida e estratos sociais” que “procuram ganhar o máximo de dinheiro no menor período de tempo possível”, pode ler-se na sinopse do projecto. Depois das vindimas, que decorrem, geralmente, durante os meses de Setembro e Outubro, “muitos seguem depois para outras colheitas — de frutas e hortícolas — integrando o sector dos chamados saisonniers agricoles, trabalhadores sazonais”.



Fotografia do projecto Saison Floue, vencedor do Prémio Talento FNAC 2025
©João Salgueiro Baptista


Há franceses, novos e velhos, a trabalhar nas vindimas em França, esclarece João Salgueiro Baptista. Mas o grupo de trabalhadores que documentou tem, no entanto, características muito específicas. “São pessoas que vivem constantemente em movimento, em carrinhas, de trabalho em trabalho, de acampamento em acampamento”, descreve o fotógrafo. “Procuram apenas ter dinheiro suficiente para viver, para poderem viver à margem, ou seja, poderem evitar uma casa para pagar, uma estrutura de vida dita normal.” Há pessoas de várias origens, mas sobretudo “portugueses, espanhóis, italianos ou de países do leste europeu”.

João fotografou de forma orgânica, sem esperar que as imagens resultassem, um dia, num projecto fotográfico. “Acabei por focar muito mais nas personalidades deles [dos trabalhadores sazonais], no seu lado excêntrico, na sua vida marginal, fora da norma, transgressora”, descreve. Em torno deste tipo de trabalho, vive-se um ambiente “à margem da ‘normalidade’”. “Um ambiente marcado por festas, raves, ‘ocupas’, música alta, piercings, cristas coloridas, animais de companhia. Um espaço onde se praticam modos de vida e de subsistência que combinam espírito de comunidade, entreajuda e reaproveitamento com o anarquismo e o punk – um modo de vida que, em si, configura [uma forma de] activismo político desafiador e, muitas vezes, transgressor.”

As fotografias a preto-e-branco que realizou ao longo dos três meses que passou em França imerso nesta subcultura descrevem uma realidade raramente documentada – esta comunidade é particularmente avessa a registos documentais. Com recurso à sua câmara analógica, compacta, de 35 milímetros – e um conjunto de rolos que o próprio ‘enrolou à mão’ durante o Verão – João fotografou sobretudo os momentos de pausa, de descanso, os de confraternização, de reunião, de lazer, de transgressão. As 20 fotografias que integram o projecto revelam “trabalho árduo e descompressão intensa”.



Fotografia do projecto Saison Floue, vencedor do Prémio Talento FNAC 2025
©João Salgueiro Baptista

“Este projeto fotográfico nasce da imersão directa nesse contexto de labor físico, exposto às intempéries, vivido em tendas, carrinhas, ocupações”, lê-se na sinopse; e descreve “um quotidiano onde o esforço exigido por esta actividade se mistura com o excesso, o tédio, o isolamento e o fácil acesso a álcool barato e a estupefacientes como o speed e a cetamina”.

A vida numa “ocupa”: amigos, dinheiro, drogas e rock’n’roll

Em Franca, em Setembro de 2023, o fotógrafo de 30 anos, licenciado em Escultura pela Faculdade de Belas Artes do Porto, começou por trabalhar nas vindimas. Findo esse trabalho, optou por permanecer no país, na companhia de outros trabalhadores nómadas, com o intuito de trabalhar noutras ‘empreitadas’ agrícolas: trabalhou também na apanha do kiwi e do pimento. “A partir do momento em que saí desse contexto [mais seguro da vindima], as coisas tornaram-se mais caóticas”, refere.

Passou cerca de três semanas sem encontrar trabalho. “No mês de Novembro, começou a chover imenso e eu, em conjunto com mais 30 pessoas trabalhadoras, estava acampado num terreno muito próximo de um leito de um rio”, recorda. Foi a polícia quem desmobilizou o grupo, para evitar acidentes. “Quando abandonámos esse terreno, procurámos um sítio novo, próximo daquele local. Encontrámos uma fábrica abandonada, um espaço coberto, abrigado, que acabámos por ocupar. Usámos os espaços do refeitório, dos escritórios, montámos colchões, algumas pessoas montaram as tendas para terem mais privacidade.”

Parte das imagens do projecto foram tiradas no interior dessa fábrica ocupada. João conta que, ao fim de poucos dias, graças à capacidade de improviso dos elementos que para ali se mudaram, o edifício já estava ligado à corrente eléctrica e já dispunha de água canalizada. “Decidimos tentar arranjar colchões, móveis, e encontrámos um sistema de apoio, em França, muito eficaz. De repente, já tinha aquecimento eléctrico, água quente, lençóis, colchão… Passei de uma tenda para uma casa, era um contraste curioso – uma espécie de luxo.”



Fotografia do projecto Saison Floue, vencedor do Prémio Talento FNAC 2025
©João Salgueiro Baptista

No interior da fábrica ocupada, a vida em comunidade provava-se exigente. “Por norma, quem tinha trabalho ia trabalhar logo de manhã – como eu, que começava às sete da manhã para terminar às quatro da tarde.” Nos tempos livres, João pintava e desenhava. Mas não só. “Numa das imagens, está a decorrer uma assembleia, estávamos a discutir a organização da ocupa”, diz. “São precisas certas regras para que as coisas não se descontrolem. Percebi que é difícil. Tentávamos receber pessoas com tendas que estavam expostas a situações mais frágeis e de repente, havia sobrelotação, o que criava problemas na capacidade logística, na convivência.”

Houve, no entanto, uma tentativa espontânea de organização, que se pode associar ao anarquismo. “Combinaram-se regras: sempre que alguém convidava alguém tinha de informar todos; definiram-se equipas para limpezas e para tratar de lixos. Havia também quem cuidasse das instalações eléctricas, que tinham de alimentar cerca de dez carrinhas. Nunca tinha vivido nada do género, mas para aquelas pessoas é relativamente habitual, uma vez que fazem isto anualmente.” No entanto, nem todos os que vivem nestes contextos partilham de ideais anarquistas. “Por vezes, há um lado anarquista mais na aparência do que no intelecto ou na acção política. Em determinadas situações, algumas pessoas vestiam o anarquismo apenas para justificar marginalidade ou transgressão.”

João sublinha que “existe uma enorme entreajuda entre as pessoas [desta comunidade], o que é bastante emocionante”. “Nunca tinha tido contacto com pessoas em situações tão avançadas de toxicodependência, por exemplo, e mesmo nessas situações vi gente disposta a ajudar o outro, a criar suporte.”

“Há um lado muito espectacular nesta experiência”, conta o fotógrafo. “Todos os dias tens uma experiência intensa. Estás rodeado de amigos, tens dinheiro, há drogas e rock’n’roll – para quem está a viver momentos de fragilidade, este pode ser o início de uma espiral negativa. Há pessoas que acabam por viver muitos anos nesse registo.” Mas há todo o tipo de pessoas, neste contexto, sublinha. “Uma amiga estava lá para conseguir financiar um projecto de literatura.”



Source link

Mais Lidas

Veja também