Aqui na América | PÚBLICO


Quem tem filhos ou lida regularmente com crianças fica habilitado a negociar crises de reféns e conflitos nucleares, ou a dialogar com líderes mundiais narcisistas. Uma das tácticas mais comuns é a do reforço positivo, a de elogiar desmesuradamente a criança, ou recompensá-la pelo cumprimento de uma regra, na esperança de que o comportamento se repita no futuro.

Essa é a explicação mais benevolente para a embaraçosa mensagem de telemóvel que o secretário-geral da NATO, Mark Rutte, enviou a Donald Trump, e que o Presidente dos Estados Unidos fez questão tornar pública na sua rede social, a Truth Social.

“Senhor Presidente, querido Donald. Parabéns e obrigado pela sua acção determinante no Irão, que foi verdadeiramente extraordinária, algo que mais ninguém teve coragem para fazer. Torna-nos todos mais seguros. Está agora a caminho de outro grande sucesso [na cimeira da NATO] em Haia esta noite. Não foi fácil mas convencemos todos [os países membros da NATO] a comprometerem-se com os 5% [de meta de despesa nacional na defesa]! Donald, conduziu-nos a um momento mesmo, mesmo importante para a América, a Europa e o mundo. Alcançou algo que NENHUM Presidente americano conseguiu durante décadas. A Europa vai pagar À GRANDE, como deve fazê-lo, e vai ser uma vitória sua. Boa viagem e vemo-nos no jantar de Sua Majestade!”, escreveu-lhe Rutte, numa mensagem que o holandês porventura julgava que permaneceria em privado (ou talvez Rutte não se importe com o ridículo, já que nesta quarta-feira chamou “paizinho” a Trump em público, justificando as palavras duras do Presidente norte-americano em relação a Israel e ao Irão).

A bajulação é uma táctica que vários líderes foram aprendendo para lidar com Trump. O jornalista e comentador Fareed Zakaria recomendou-a há tempos, sugerindo aos governos que criassem comendas e títulos espalhafatosos para agraciar o Presidente norte-americano, para lhe satisfazer o ego. O Paquistão sugeriu há dias que Trump merecia o Nobel da Paz. O primeiro-ministro israelita, Benjamin Netanyahu, anda lá perto, manipulando habilmente e como poucos os humores do Presidente. Até mesmo Mark Carney, o primeiro-ministro canadiano, que foi eleito por um impulso nacionalista gerado pela guerra comercial decretada por Washington e pela insistente sugestão de anexação pelo antigo aliado histórico, desfez-se em elogios a Trump quando o visitou em Washington, para lhe dizer de seguida, cautelosamente, que o Canadá não estava à venda. 

Sabemos o que acontece quando não se cumpre o ritual. Volodymyr Zelensky foi humilhado na Casa Branca por não ter repetido ali o que já tinha dito em ocasiões suficientes: “obrigado, senhor Presidente”. 

Aos elogios juntam-se as prendas: o Boeing 747 de luxo que o Qatar prometeu a Trump, os empreendimentos imobiliários que vários países aprovaram aos filhos do Presidente, as parcerias assinadas para negócios de criptomoedas com a família do republicano.

O registo repete-se dentro de fronteiras. Congressistas republicanos, perpetuamente reféns de uma incessante sucessão de ciclos eleitorais a cada dois anos, em que dependem do apoio de Trump, apresentam propostas para colocar o rosto do Presidente numa nota de 250 dólares ou esculpido no Monte Rushmore. As reuniões do Governo e as conferências de imprensa com os seus membros iniciam-se invariavelmente com sessões de elogios ao chefe.

O regime reproduz e expande depois esta lógica de submissão a um poder hierarquizado e personalizado a todas as instâncias da vida pública. A leitura, esta semana, do relato detalhado que o New York Times faz do desmantelamento da USAID, a agência norte-americana de ajuda externa e apoio ao desenvolvimento, que deixa agora milhões de pessoas em risco de fome, doença e morte, é mais um exemplo estarrecedor da dinâmica: no final de contas, não foram as suspeitas de fraude ou uma qualquer orientação política coerente a ditar o fim da agência, nem esse fim tinha sido realmente planeado; foi sobretudo um acto de fúria do DOGE de Elon Musk pela relutância dos funcionários em conceder acesso a gabinetes, sistemas de comunicação e documentos sensíveis sem uma justificação plausível. A birra de Musk e dos seus subordinados terá custado mais de 350 mil vidas até ao momento e 60 anos de soft power norte-americano.

A América e o mundo estão a aprender a lidar com as crianças. O custo da lição é que estamos agora todos reféns da birra da hora de ir para cama.



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