Eu poderia escolher outro tópico para o meu primeiro escrito nessa plataforma, mas definitivamente a minha recente experiencia no Caminho de Santiago de Compostela fala mais forte.
Dois anos e meio e muitas vivencias dolorosas depois eu ouvi o chamado. Precisava me resgatar e parecia que aquela era uma ótima oportunidade. Enquanto imigrante, falo com prioridade que quanto mais tempo ficamos longe dos nossos e da nossa cultura, mais vamos perdendo nossa identidade.
Nos perdemos em meio a rotina, às situações e imprevistos pela jornada. Dentro dessa bolha, forjada pelo capitalismo, nos esquecemos do Eu. O quanto a relação afetiva consigo mesmo é perdida ou deixada de lado. Eu precisava desesperadamente recuperar isso.
No dia 27 de Julho eu parti do Porto, num dia ensolarado e uma adrenalina pulsante – não irei detalhar o percurso de cada dia, somente os pontos mais importantes. Logo no segundo dia eu me via ferida, com os pés bastante machucados e queimaduras de sol, foi então que eu comecei a vivenciar o que é o Caminho.
Em Barcelos eu conheci um senhor que estava na recepção, um voluntário chamado Antonio, que me auxiliou com palavras e também com o cuidado com os pés. Ele me disse que assim que chegasse à Ponte de Lima para procurá-lo que ele iria me ajudar. Guardem essa informação.
Os dias começaram a parecer mais longos, eu acordava agora sempre as 4 da manhã de forma que as oito horas de caminhada fossem antes do sol do meio dia. Assim eu contemplei as mais belas paisagens ao nascer do sol e, mesmo antes disso, atravessei as matas na escuridão ouvindo os pássaros despertarem.
Eu já trazia uma dor de uma situação que me abalou pouco antes de partir para essa aventura e houve outras mais durante o trajeto. Parecia um teste, eu seguia sozinha. As dores pioravam, meus pés gritavam, quantas vezes peguei o celular a procura de uma forma de voltar para casa e desistir. Sempre nesses momentos surgia um anjo e eu continuava.
Cada vez que um pensamento ruim me atravessava a mente, algo bom surgia diante dos meus olhos. Em zonas rurais, por exemplo, e com pouco acesso à restaurantes ou bares, os moradores deixam água e alimentos para os peregrinos pela manhã. Sempre que viam um, abriam logo um sincero sorriso e diziam: bom caminho!
Foi quando em Ponte de Lima eu senti que talvez não fosse possível seguir, eu tinha meu emocional abalado, os pés severamente feridos, bolhas e algo chamado púrpura que fez com que meus vasos sanguíneos superficiais rompessem e causassem dor.
Cheguei ao albergue as 17h00, isto é, saí as 4 da manha e fiz 32 km, com pausas por conta do calor e das dores. Quase 13 horas na estrada. Logo na recepção encontrei o Antonio, que abriu um singelo sorriso ao me ver. Eu lhe mostrei os pés e ele disse: Não disse-te que ias precisar de mim? Tomas um duche e metes os pés nessa cadeira que vou lhe ajudar.
Cuidadosamente ele costurou cada uma das minhas bolhas, aplicou iodo nas feridas e deu-me alguns curativos. Na mesma hora, sentou-se ao meu lado o Luís, massagista voluntario do local. Sim, eu recebi uma massagem incrível e dormi como uma criança.
No dia seguinte, foi como mágica, eu me sentia disposta novamente. Caminhei até um alojamento onde conheci dois brasileiros com quem fiz o restante do caminho. A ajuda mútua, a troca de boa energia, o anseio pela expansão espiritual. Eram as pessoas que eu precisava ter comigo naquele momento.
O caminho é isso, ele te coloca exatamente onde você precisa estar, com as pessoas com quem precisar se conectar. Ele ensina que você não precisa do melhor carro, porque seus pés te levam longe, você não precisa de muitas roupas, três é suficiente para tantos dias e te basta. O mais importante, o que é de fato imprescindível, é a sua própria força de vontade, ela te move e coisas movem em direção a você trazendo aquilo que te nutre a alma e espírito.
Assim, passaram-se 11 dias, quando pisei os pés em Compostela e o curioso foi que eu não senti aquele pico de alegria como se tivesse chegado ao objetivo final. Não. Porque eu sabia que a minha caminhada não havia terminado ali. Eu ainda preciso continuar, eu não posso desistir. Há muito a percorrer e tanto a aprender. Deve ser por isso o tal ditado peregrino: uma vez no Caminho, sempre no Caminho!