— Há sonhos que eu sei que já não vou concretizar.
— E vive bem com isso?
— Vivo, porque concretizei também muitos — conclui Etelvina Araújo (1957-2023), bibliotecária municipal de Santa Maria da Feira, numa entrevista de julho de 2021.
Pela primeira vez, vejo e ouço Etelvina ao vivo e a cores, graças à imagem projetada na fachada da Biblioteca Municipal de Santa Maria da Feira, que dirigiu e impulsionou de 1993 a 2022. Durante esse período, deixou um legado indelével, transformando esta biblioteca numa referência entre as públicas em Portugal.
As minhas palavras sobre Etelvina Araújo, falecida em 2023, não são mera simpatia de ocasião. É certo que é na projeção na fachada que a vejo e ouço pela primeira vez, mas sinto que a conheço e que me acompanha há mais de um ano como um modelo de profissionalismo e sentido de missão. Desde o primeiro telefonema que realizei para iniciar a organização da Road Trip Literária – 18 distritos, 18 bibliotecas, 18 livros, em maio de 2024, que ouço bibliotecários, académicos e autarcas de todo o país referirem Etelvina Araújo como uma visionária e uma inspiração.
“Etelvina Araújo foi o rosto da primeira e mais importante de todas as políticas culturais do município de Santa Maria da Feira: a promoção do livro e da leitura”, afirmou Gil Ferreira, vereador da Cultura, no início da tertúlia Casa do Saber – Bibliotecas que Acolhem o Futuro. A conversa, na qual tive o privilégio de participar — juntamente com Luís Santos, diretor-geral do Livro, dos Arquivos e das Bibliotecas; Zélia Parreira, diretora da Biblioteca Pública de Évora, e com a moderação do escritor e ilustrador Pedro Seromenho —, decorreu simbolicamente na sala de leitura, assinalando o arranque do Livrar – Festival do Livro, Futuro e Progresso, e a celebração dos 25 anos de abertura ao público da Biblioteca Municipal de Santa Maria da Feira.
Mas, nesta noite, quase tudo foi — merecidamente — sobre a homenagem Etelvina Araújo – Memória Maior.
Até ao dia 17 de junho, data do evento que descrevo, Etelvina Araújo era apenas — e nunca com uma conotação diminutiva — um nome ligado a uma obra notável. Não conseguia associar-lhe um rosto, uma voz, muito menos uma família.
Em 2023, a Biblioteca Municipal de Santa Maria da Feira foi aquela que, a nível nacional, mais empréstimos realizou
Cortesia Isabel Quintas
Em 2024, a Biblioteca Municipal de Santa Maria da Feira foi galardoada com o Prémio Maria José Moura de Boas Práticas em Bibliotecas Públicas
Cortesia Isabel Quintas
A poucos metros do lugar que me foi atribuído na tertúlia, observam-me o marido e as filhas de Etelvina, enquanto desenvolvo alguns raciocínios sobre bibliotecas, livros, missão e amor. A minha voz treme quando partilho que, de norte a sul, o trabalho de Etelvina Araújo é referido e reconhecido por muitos. Sinto que tudo o que digo é pouco, ou banal, perante aqueles que tiveram o privilégio de trabalhar ou conviver com Etelvina durante anos, e sobretudo perante os que a tratavam por “Nininha” ou “mamã”.
Marido e filhas emocionam-se durante a tertúlia. Choram de saudade, aplaudem o legado. Aplaudimos todos. Mesmo quem não assiste.
Na fachada, Etelvina partilha filosofia de vida e missão. Ouvi-la, é uma lição:
“Ser resiliente é o meu ponto forte. E aceitar, naturalmente, aquilo que vem à minha vida. E aquilo que eu digo aos meus colegas é que, por mais que a máquina os absorva, que eles tenham a capacidade de encontrar naquilo que fazem qualquer coisa de que gostam. E, se por acaso não a encontrarem, procurarem saber o que é que podem fazer que gostam. E manifestá-lo a quem é direito para terem essa oportunidade”.
“Profissionalmente, há uma coisa de que me orgulhou muito. Ainda hoje sinto a emoção que senti no dia em que inaugurámos esta biblioteca. Eu lutei muito por esta biblioteca. E, de facto, no dia em que inaugurámos, eu tive uma comoção emocional. Porque foram muitos anos para concretizar um sonho. E gostei de mim própria naquela altura. Isto é nosso. É de todos nós. Eu tenho aqui muitos leitores, casais que não leram nunca na vida, mas que consideram que já devem dar esse direito aos filhos. E, portanto, isto também vai atraindo as pessoas. E não me posso queixar muito. Mas ainda temos muitos não-utilizadores para ganhar.”
O acumulado de 2,5 milhões de utilizadores em 25 anos de atividade é um atestado dos muitos não-utilizadores ganhos. E não há melhor indicador do sucesso de uma biblioteca do que o número de pessoas que a frequentam e requisitam livros. Destaco que, em 2024, a Biblioteca Municipal de Santa Maria da Feira foi galardoada com o Prémio Maria José Moura de Boas Práticas em Bibliotecas Públicas. Além disso, em 2023, foi a biblioteca que mais empréstimos realizou e que mais investiu em livros e documentos.
“Ao longo da sua vida, Etelvina foi mais do que uma profissional exemplar; foi uma amiga, uma mentora e uma fonte inesgotável de inspiração. A sua dedicação à biblioteca e à cultura local deixou uma marca indelével em todos nós. Hoje, ao revisitarmos os espaços que ela tanto amava, sentimos a sua presença em cada canto, em cada livro, em cada música, em cada quadro, em cada sorriso”, testemunha, emocionada, Mónica Gomes, a atual diretora.
Homenagem a Etelvina Araújo
Cortesia Isabel Quintas
Durante a homenagem, os presentes percorrem a biblioteca atrás de uma bailarina que transporta um candeeiro de papel. “Percorremos os corredores desta casa guiados pela ‘pequenina luz bruxuleante’, símbolo da sua paixão pelo livro, pela leitura e pela cultura. Este objeto, que eterniza a abertura desta biblioteca, e também um tributo à poesia de Jorge de Sena, que, com suas palavras, capturou a essência da luz que Etelvina representava. Por mais anos que passem, esta será sempre a sua casa e brilhará sempre no meio de nós”, termina Mónica, sem esconder a emoção.
Na fachada, Etelvina, tão grande como o seu legado, numa poética partilha.
— Há sonhos que eu sei que já não vou concretizar.
— E vive bem com isso?
— Vivo, porque concretizei também muitos.
Às lágrimas e à pele de galinha, seguiram-se um recital ao piano, os parabéns a você, um delicioso bolo de aniversário, espumante e, claro, o brinde!
Etelvina, incrustada nas paredes da Casa do Saber da Vila da Feira, sorri, feliz, ao ver tanta gente reunida a celebrar um sonho bem vivo.
O autor escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990