O ódio escreve feio por linhas invisíveis | Megafone


Foi no contexto de uma visita à Sé Nova de Coimbra, há uns belos anos, numa aula sobre a influência da arte portuguesa no estrangeiro, que recebi a nota de repúdio da professora sobre os graffiti que, desde que me lembro, declaram voz, romance e protesto pelas paredes do Museu Nacional Machado de Castro.

No parque de estacionamento da Sé havia umas placas que diziam “Sé/Catedral” e a professora falou com um humor subtil e próprio do campo da história de arte que “ao invés de sujarem as paredes do património com aberrações podiam corrigir a placa, já que Sé é uma coisa e Catedral outra; ou seja: ou é uma coisa ou outra”.

Após a conclusão do curso, cumpri a promessa silenciosa de fazer a piada tornar-se realidade, mesmo que o público apenas fosse o polícia que decretou a substituição da placa, riscando a palavra “catedral”. Foi a única vez que experimentei grafitar, sendo que é uma arte da qual me sinto declaradamente afastado, seja do universo estético ao qual pertence, assim como do seu vocabulário artístico.

E é das piadas que se tornam realidade que o graffito feito ao cartaz do 45.º Festival de Teatro de Almada foi intervencionado ao censurar um beijo homossexual para apresentar a peça História da violência.

Da história da violência conhecemos tanto dela quanto dela nos é revelada aos poucos: da iconização subtil das faces que compõem um fascismo cada vez mais estrutural, e da censura desavergonhada às representações de liberdade de uma cultura que se vê hoje cada vez mais diluída, seja a nível temático, seja a nível governamental com a fundição injustificada do Ministério da Cultura.

O ódio ganha proporções visíveis, físicas e virtuais e tem-se assistido a aplicações da violência em pontos nevrálgicos do pensamento democrático, perfurando-o desenfreadamente que nem uma versão espertinha e malvada do Louco do Auto da Barca do Inferno que situado entre a realidade e o absurdo aplica juízos de valor extremos, fazendo-se valer do seu título de ignorante. Ignorância essa que atravessa qualquer razão própria, espírito comunitário e manifestações exequíveis de liberdades de expressão discutíveis (muitas vezes até no plano jurídico).

Após o episódio de violência colectiva em pleno 25 de Abril, manchando (de sangue) pela primeira vez em Portugal a data reservada ao reconhecimento de um passado que alterou toda a urbanidade e formas de pensar a cidade e a cultura. Ele pode ser flexível para todos os lados, dependendo do requerimento, e do requerente; assim como a política se faz de representação da paisagem de um país que outrora via serpentes ao longe e hoje sente a picada. Será através da picada que se ganha consciência da paisagem que se desenha após estas últimas eleições. feitas de apatia crítica, e gente que declarou há bastante tempo que viveria de ódio, expandindo-se para a rua, sem sabermos em que condições se nutre essa odiosidade dentro das casas, nesta aparente invisibilidade fascista que se demonstra cruel e devastadora na hora de todas as verdades, que é a hora dos votos.

Fábio Colaço apresentaria em 2021 a sua exposição PORTRAIS na galeria Nave, na qual instalava um conjunto de retratos de líderes políticos desfocados a óleo; e talvez aqui esteja uma ideia a ter em consideração: será que teremos de fazer censura por censura? Responder à violência com a mesma tinta? Nas mesmas proporções?

A violência não poderá responder pela violência se queremos fazer um jogo justo, mas talvez as liberdades justas necessitam de um novo desavergonhar, de um renascimento belo para afastar a violência de forma inteligente, perspicaz, e poética ao mesmo tempo.

E ainda houve alguns jornais preocupados com a chegada das pichagens de São Paulo à cidade de Lisboa. Acreditem, não é esse o inimigo: o ódio escreve feio por linhas invisíveis.



Source link

Mais Lidas

Veja também