Neste pedaço de terra à beira-mar plantado, assistimos nos últimos anos ao reaparecimento de uma realidade há muito esquecida: são cada vez mais os que lêem e compram livros e, consecutivamente, se batem recordes de presenças nas Feiras do Livro, bem como nos eventos culturais a elas associados.
Do outro lado do oceano, os norte-americanos vivem um contexto antagónico. Na “terra da liberdade”, livros incontáveis estão a ser retirados das prateleiras das bibliotecas públicas num movimento que, embora não seja recente — remonta a 1637 —, tem ganhado novo ímpeto. Só no ano lectivo de 2023/2024, os EUA baniram 10 mil livros, segundo a PEN America. Com máximos a serem ultrapassados incessantemente, é de esperar que estes números se tornem brevemente obsoletos.
Além desta forma moderna de censura se estar a propagar a um ritmo sem precedentes, e envolver tanto políticos a nível estadual como federal que procuram controlar o que se ensina nas escolas e ao que os alunos têm acesso, está também a ser direccionada, na sua maioria, a obras sobre temáticas como o racismo, sexualidade, morte, e/ou com personagens LGBTQIA+.
Sem surpresas, são os estados republicanos que mais recorrem a esta arma, em busca de carbonizar oposição às suas agendas políticas conservadoras. Os especialistas têm estabelecido paralelos com regimes totalitaristas por estes motivos, mas também porque a “queima de livros” não acontece no vácuo, mas num panorama mais amplo de restrição de inúmeras liberdades e direitos.
O direito ao aborto, que deixou de ser protegido pela Constituição e recuou ao ponto de ser ilegal em 12 estados (todos eles “vermelhos”) e altamente restringido em muitos outros, a par da perseguição a imigrantes efectuada pelo ICE (Immigration and Customs Enforcement) — à la Gestapo — a pessoas não brancas, deportando-as e/ou colocado-as na prisão de El Salvador, em violação do habeas corpus, são cabais exemplos disso mesmo.
Fazendo a viagem de regresso para efectuar um necessário paralelo, a venda de livros em Portugal cresceu quase 6% em 2024 (+9,4%, fruto da venda de 14 milhões de exemplares, segundo a GfK), impulsionado pelos jovens e pelo BookTok, que levou os mais novos a regressar à palavra escrita.
Neste “renascimento” da literatura — em que a procura é sobretudo por ficção light e estrangeira —, esta tem como propósito maior divertir e ajudar a escapar da realidade, tornando-se mais um produto da sociedade capitalista e assemelhando-se, assim, a um programa de televisão destinado ao binge-watching, seja ele de ficção, de culinária, de jogo, ou reality tv.
Esta forma de cultura por si só não enriquece nem quem lê, nem a sociedade, uma vez que não incentiva reflexões nem estimula o pensamento crítico. É, de acordo com Vargas Llosa, um mecanismo que permite ignorar assuntos problemáticos e submergir-nos num momentâneo “paraíso artificial”. Em A Civilização do Espetáculo, o peruano revela um paradoxo: “Enquanto nos países considerados mais cultos, que são também os mais livres e democráticos, a literatura se vai convertendo, segundo uma concepção generalizada, num entretenimento intranscendente, naqueles onde a liberdade é reduzida e onde os direitos humanos são diariamente insultados, considera-se a literatura perigosa, disseminadora de ideias subversivas” (p. 209).
Portanto, é de considerar que um interesse renovado pelos livros é sim uma vitória — até porque não há muito tempo os professores queixavam-se que os alunos não liam um livro do princípio ao fim, e eram raras as pessoas com os narizes nos livros em transportes e espaços públicos. Contudo, é um triunfo que só terá verdadeiro significado e impacto quando inspirar leituras mais profundas, análises mais sérias, olhares mais atentos e, sobretudo, mais acção. A complexidade humana, e do mundo que moldamos diariamente, assim o exige.
A “aldeia global” não pode ser apenas uma tendência permitida pelas tecnologias da comunicação, que encurtam distâncias e interligam pessoas em todo o globo. A sensação de comunidade numa escala planetária é uma responsabilidade que tem de unir cidadãos, o sector público, privado e social. Só seremos verdadeiramente livres quando todos o formos. Em Portugal, nos EUA, na Ucrânia, na Palestina, e em todos os países e regiões onde houver oprimidos e opressores. Um livro — e uma acção — de cada vez.