Portas trancadas, janelas abertas: o futuro da casa comum | Opinião


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Uma das propostas mais significativas do novo governo português, no âmbito da revisão da Lei da Nacionalidade, é o aumento do tempo mínimo de residência legal de cinco para dez anos exigido a estrangeiros para poderem requerer a aquisição da nacionalidade portuguesa por tempo de residência. A proposta, que será oportunamente debatida na Assembleia da República, parece alinhar-se com a crescente pressão política para um controlo mais apertado da política migratória não só em Portugal, mas em toda a União Europeia. No entanto, apesar de legítima do ponto de vista da soberania nacional, esta alteração tem implicações nas expectativas dos cidadãos brasileiros e irá suscitar, certamente, uma resposta por parte do Brasil, sobretudo à luz do princípio da reciprocidade.

Portugal acolhe a segunda maior comunidade brasileira no estrangeiro, apenas atrás dos Estados Unidos. Entre todos os imigrantes legalizados vivendo no país, a Agência da Integração, Migrações e Asilo (AIMA) afirma que a comunidade brasileira representa quase metade do total de estrangeiros residentes em território português, num universo que já ultrapassa 1,6 milhões de pessoas. São, de longe, o principal grupo imigrante em terras lusas.

Num artigo recente do jornalista Vicente Nunes, editor-chefe do Público Brasil (Governo do Brasil espera por dados atuais sobre quantos brasileiros vivem em Portugal), Raimundo Carreiro, embaixador do Brasil em Portugal, sublinhava que, “para além da sua evidente contribuição demográfica, os trabalhadores brasileiros contribuíram com quase 1,4 mil milhões de euros (cerca de R$ 8,4 mil milhões) para o sistema previdenciário português, um aumento de 25% face ao ano anterior”. A verdade é que a presença de imigrantes brasileiros é indispensável em diversos setores da economia portuguesa.

No mesmo artigo, o cônsul-geral do Brasil em Lisboa, embaixador Alessandro Candeas, alertava para a necessidade urgente de o governo brasileiro dispor de números precisos sobre os seus cidadãos residentes em Portugal. “Uma das responsabilidades do Estado é a proteção consular dos seus cidadãos no exterior. Para isso, como para qualquer planeamento de política pública, as estatísticas são um instrumento fundamental de informação. Trabalhamos com estimativas, mas é importante termos os dados oficiais mais precisos.”

Contudo, para além da legítima preocupação com a proteção consular, é fundamental que o governo brasileiro, munido de dados sobre a contribuição demográfica, econômica e social dos seus cidadãos em Portugal, entre em diálogo com as autoridades congêneres sobre a proposta de endurecimento das regras para a aquisição da nacionalidade portuguesa por via da residência — uma mudança que afetará de forma particular os brasileiros.

Neste contexto, o princípio da reciprocidade, consagrado na Constituição brasileira, não deve ser ignorado. O artigo 12º, inciso II, alínea a), estabelece que cidadãos originários de países de língua portuguesa podem adquirir a nacionalidade brasileira após apenas um ano de residência ininterrupta, mediante comprovação de idoneidade moral. Para os demais estrangeiros, o prazo é de quinze anos, nos termos da alínea b). Além disso, o parágrafo 1º do mesmo artigo estabelece que aos portugueses com residência permanente no Brasil, se houver reciprocidade em favor de brasileiros, serão atribuídos os direitos inerentes ao cidadão brasileiro, salvo os casos previstos nesta Constituição.

Caso Portugal venha a impor critérios mais exigentes aos cidadãos brasileiros — continuando, ainda assim, a usufruir da facilidade constitucional garantida pelo Brasil —, caberá ao Estado brasileiro reavaliar esse desequilíbrio. A diplomacia fundamenta-se, para além de vínculos históricos e políticos, também em princípios jurídicos que assegurem a paridade e o respeito mútuo. Ora, enquanto Portugal se prepara para exigir aos brasileiros (e a outros estrangeiros) dez anos de residência para poderem requerer a nacionalidade portuguesa, o Brasil continua a conceder esse direito aos portugueses após apenas um ano de residência comprovada e idoneidade moral reconhecida.

Não se trata aqui de defender uma atitude retaliatória, mas sim de exigir um posicionamento técnico e politicamente coerente. O governo brasileiro, que já expressou vontade de fortalecer os laços com a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), deve colocar o princípio da reciprocidade no centro dessa agenda. Ao Itamaraty cabe não apenas observar, mas assumir um papel ativo na construção de uma política migratória que assegure os direitos dos brasileiros no exterior — sobretudo em contextos de evidente assimetria nas relações bilaterais.

A revisão da Lei da Nacionalidade é uma prerrogativa soberana de Portugal, mas os seus efeitos repercutem-se para além das fronteiras — sobretudo quando incidem sobre comunidades com laços históricos e afetivos tão profundos como os que unem portugueses e brasileiros. A resposta brasileira não deve ser de confronto, mas de diálogo institucional firme, assente na reciprocidade, que é um dos pilares da cooperação internacional. Mais do que fechar portas ou manter janelas abertas, importa reconhecer a integração plena entre luso-brasileiros, refletida na escolha mútua de habitar uma casa comum.



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