O Jongo foi reconhecido como Patrimônio Cultural Imaterial do Brasil pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) há 20 anos e permanece uma resistência da cultura negra levada adiante por descendentes de pessoas escravizadas de origem Bantu, especialmente do Congo, Angola e Moçambique, que foram trazidas para trabalhar em lavouras de café e de cana-de-açúcar, nos estados do Rio de Janeiro, Minas Gerais, São Paulo e Espírito Santo.
A manutenção dessa expressão cultural afro-brasileira característica da região sudeste do Brasil, que reúne ritmo com a percussão de tambores, dança e os versos dos cantos também conhecidos como pontos, se deve, e muito, pela transmissão dos saberes de geração em geração, por meio da comunicação oral ou oralidade, do gestual e da materialidade dos instrumentos musicais.
“Dos mais velhos para os mais novos. Até pouco tempo atrás, criança não podia dançar. Os mais velhos não permitiam porque muitas coisas eram tratadas nas rodas de Jongo através do canto, coisas sérias de busca da liberdade. As crianças não participavam, mas hoje em dia, nós trabalhamos com as crianças, justamente para não perder a nossa raiz e a tradição”, revelou à Agência Brasil, a Mestra Fatinha, 69 anos, uma das lideranças e matriarcas do Jongo do Pinheiral, que segundo ela foi reconhecido há seis meses foi reconhecido como patrimônio imaterial do estado do Rio de Janeiro.
“A história preta é oral. Para ser jongueiro tem que fazer vivência. A gente não aprende o Jongo em livro, por isso a gente fala que as nossas comunidades são tradicionais. A gente aprende no dia a dia. O Jongo faz parte da nossa vida”, apontou a Mestra.
“É uma expressão que tem espiritualidade também, não é religião mas tem uma força espiritual importante de união dos jongueiros e de homenagem aos seus antepassados que chegaram [ao Brasil] escravizados no século 19”, acrescentou a professora do Laboratório de História Oral da Universidade Federal Fluminense (UFF), Martha Abreu, em entrevista à Agência Brasil.


Até pouco tempo, as crianças não podiam dançar. Foto: Karen Eppinghaus/Divulgação
Crianças
Apesar de as crianças não terem permissão para participar das rodas, Mestra Fatinha esteve presente desde cedo por causa da sua estatura física. Ela e as irmãs eram muito altas já com dez anos. “A gente foi para o Jongo muito cedo. É uma vida dentro do Jongo. As crianças que conheci criança, cresceram e hoje me chamam de vovó do Jongo”, contou, acrescentando que a mãe dela, Constância Oliveira Santos, também matriarca está com 92 anos, enquanto Deric, um menino da comunidade, aos 4 anos, já é um jongueirinho. “A família dele é descendente direta dos escravizados da fazenda. Ele está vindo aí, a mãe dança, a avó dança, a bisavó dançava e ele está vindo, uma gracinha o Deric”, comentou.
A presença dessa manifestação cultural é forte no Vale do Rio Paraíba e se mantém em cinco comunidades centenárias dos municípios de Barra do Piraí, Piraí, Valença, Pinheiral e Vassouras, no sul do Rio de Janeiro, entre elas, o tradicional Jongo do Pinheiral, que surgiu da manifestação das pessoas escravizadas da Fazenda São José dos Pinheiros, que pertencia à família Breves. O local é considerado como a origem do jongo.
Mestra Fatinha contou que o local, uma das maiores fazendas de café do Brasil, teve mais de 3 mil negros escravizados. “Uma das maiores famílias escravocratas do Vale do Café”, pontuou.


Foto: Karen Eppinghaus/Divulgação
Dia Estadual do Jongo
No Rio de Janeiro, se comemora neste dia 26 de julho o Dia Estadual do Jongo, não por acaso, é também o Dia de Senhora Sant’Ana, mãe de Maria e avó de Jesus Cristo, sincretizada como Nanã nas religiões de matriz afro-brasileira. “Uma homenagem à ancestralidade feminina, às pretas velhas jongueiras, avós que souberam abençoar e nutrir as novas gerações com uma forma de expressão hoje consagrada como patrimônio cultural do Brasil”, informou o site do Centro de Referência de Estudo Afro do Sul Fluminense (Creasf) do Jongo de Pinheiral.
Também chamado de congo ou caxambu, o Jongo é uma manifestação característica da região sudeste do Brasil, segundo a Mestra Fatinha, que tem mais de 40 anos de militância pela divulgação e preservação da cultura do Jongo, o nome varia conforme o local em que se desenvolveu. No Espírito Santo, por exemplo, é jongo ou congo. No Morro do Salgueiro, na zona norte do Rio de Janeiro, é Caxambu, nome dado também em Minas Gerais e no Morro da Serrinha, em Madureira, também zona norte da capital, é Jongo.
Festejos
É justamente no Dia Estadual do Jongo que começam as festividades de 2025. Neste sábado (26), mestres, mestras e jongueiros estarão reunidos no 4º Encontro de Jongos do Vale do Café, no Parque das Ruínas de Pinheiral, local onde o Jongo nasceu, durante a escravidão nos cafezais e área que pertenceu a família de Joaquim de Souza Breves, o maior senhor de escravizados da região. “A gente recebe muita gente aqui, pessoas que gostam mesmo da cultura do jongo. É um dia maravilhoso de reencontros e encontros, nossos tambores tocando o tempo todo da abertura até o final”, indicou a Mestra Fatinha.
O 4º Encontro vai reunir cerca de 400 lideranças de Jongo e mestres de mais de 18 comunidades e quilombos tradicionais dos estados do Rio de Janeiro e de São Paulo.


Foto: Karen Eppinghaus/Divulgação
“Primeiramente tem o impacto econômico de gerar emprego, renda e trabalho com o turismo étnico. Fora isso tem o impacto simbólico extremamente importante que foi o povo preto que construiu com seus próprios braços a área do café e sustentou a economia brasileira no ciclo do café, foram milhões de escravizados que chegaram no Cais do Valongo [região portuária do Rio de Janeiro] e subiram para os cafezais, que são justamente os antepassados desses mestres de jongo que vão estar aqui”, disse o músico, pesquisador e coordenador do encontro, Marcos André Carvalho, em entrevista à Agência Brasil, acrescentando que a prefeitura de Pinheiral cedeu o Parque para que o jongo do Pinheiral realize ali as suas atividades culturais.
“Isso também é uma virada histórica de superação. Aquele espaço que escravizou os antepassados dessas mulheres negras e mestras, hoje é dirigido por elas e ali vai ser construído o parque temático sobre a história do negro no Vale do Café”, completou.
De acordo com Marcos André, o planejamento do parque temático está em andamento e o projeto executivo para a criação do espaço foi selecionado pelo Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), do governo federal.
“Ali vai ter o Museu do Jongo, a Escola de Jongo, um restaurante de comidas étnicas e um centro turístico de visitação. A inauguração é para 2027, mas o projeto executivo já está sendo elaborado com recursos do PAC, porque fomos selecionados pelo governo federal para este projeto do parque”, informou.
“Está na hora do Brasil devolver para o povo negro do Vale do Café toda a riqueza que construiu o Brasil através da venda do café para o mundo inteiro durante o Brasil colônia. Tantos anos depois da Abolição essas comunidades ainda não têm os seus museus, os seus centros de visitação e as suas escolas de jongo. Pinheiral já deu o primeiro passo”, pontuou.


Reconhecimento do Jongo, por Karen Eppinghaus/Divulgação
Samba
A professora Martha Abreu, disse que o Jongo é considerado um dos pais do samba carioca porque as pessoas migraram para a capital do Rio e sem recursos financeiros foram morar em periferias uma vez que “a abolição não trouxe reparação”.
“Tem grupos importantes na Serrinha em Madureira, no Salgueiro, já teve na Mangueira, no Estácio, diversos morros. Essa bagagem cultural é tão importante que esses que chegaram são fundadores das escolas de samba. Em contato com a modernidade, no Rio de Janeiro todas as escolas mais antigas têm jongueiros na sua fundação. O próprio Império Serrano, a Mangueira, a Portela e o Salgueiro nem se conta, é um Jongo incrível. É Caxambu. Lá grande parte da comunidade veio de Minas Gerais e lá eles chamam caxambu”, informou a professora da UFF.
Dentro da Semana do Patrimônio Histórico Nacional, as festas pelos 20 anos do reconhecimento dessa manifestação cultural, vão continuar entre 14 e 16 de agosto, no Encontro de Jongueiros, que promete transformar a Praça Tiradentes, no centro do Rio, em um grande quilombo, com a presença de cerca de 18 comunidades de Jongo e, aproximadamente, 400 jongueiros.
A programação inclui rodas de Jongo, shows de samba, oficinas com mestres, um seminário no Teatro Carlos Gomes, exposição fotográfica na praça e o lançamento do projeto Museu do Jongo, que será um portal com mais de 5 mil fotos e vídeos sobre comunidades de Jongo. Além disso haverá as estreias de dois curtas-metragens dirigidos por Marcos André: Jongo do Vale do Café e Mestres do Patrimônio Imaterial do Estado do Rio.
“A gente quer lotar a Praça Tiradentes. Vai ser o grande momento da celebração desses 20 anos, com as rodas de jongo, no dia 16, de graça, na Praça Tiradentes”, disse Marcos André.
FonteAgencia Brasil