Tarde de Junho. Praia.
Uma criança com a pele brilhante e despida, desmonta o brinquedo no meio da areia, debaixo da sombra redonda e espaçosa do chapéu de sol, e da sombra ainda mais espaçosa das costas da mãe — ocupada em agilizar a logística do ócio: a arrumar, estender, guardar, despejar, a organizar, como se também o repouso carecesse de preparação e organização, tão habituada que está em compreender o rolar do tempo através do cuidado, do desempenho e das tarefas que lhe atribuem existência, a ela, e ao tempo.
Observo-os da minha toalha, olhos postos entre o mar, o céu e o suor que escorre nos meus joelhos — duas colinas que se desviam para que eu possa ver a cena. O brinquedo da criança está agora desfeito em dezenas de pecinhas que se soterram e se afundam na areia. Talvez na sua forma inteira, o brinquedo tenha sido um camião-grua, ou um helicóptero com um capitão-pato, mas agora é só um desamontoado de pequenas peças de plástico que provavelmente não se voltarão a encaixar.
As mãos da criança, empapadas de protetor solar e avidez, abrem e desenroscam, desatarraxam e separam os blocos do brinquedo, como quem procura espreitar o que se passa entre as partes agora soltas. Para desvendar o seu interior, para entender o que, inteiro, o brinquedo não consegue explicar. Para ver o que esconde dentro: o âmago de um brinquedo talvez desvende o segredo da Felicidade, tão apto que é a provocar consolo, alegria e entusiasmo.
A curiosidade da criança circula sôfrega entre os olhos e a ponta dos dedos das mãos. Qual King Kong de calções de banho, o miúdo tenta desatarraxar a ligação de uma esfera que segura entre os pés, e lá consegue separar aquilo que, de ao longe, percebo ser a cabeça de um pato-capitão, agora sordidamente degolado, enquanto estica e repuxa o último bocado: Poing!
A bola salta, a mãe sobressalta-se, olha para trás interrompendo os seus afazeres, arregala os olhos, entorna a água da garrafa no páreo, solta uma onomatopeia, suspira, espreita a boca da criança para confirmar que não terá engolido um parafuso, uma argola, uma pata do pato. Olha em volta. Vê o brinquedo desmontado. Ralha.
Para a mãe são destroços. Para a criança são pedaços de compreensão. Peças-chave para o mundo.
Certa vez, a minha parceira de mesa da escola, sentada ao meu lado por afinidades alfabéticas, mas não por amizade, ficou de castigo por ter desmontado o relógio de pulso. Aconteceu durante uma não tão entusiasmante aula de Geografia, onde aprendíamos nomes de coisas que não conseguíamos tocar, montanhas que não poderíamos subir, formações terrestres que não nos deixavam escavar, porque na sala as mesas eram de madeira estéril envernizada, e não de terra para enfiar as pontas dos dedos.
As nossas mãos ficavam inúteis em cima da mesa, os nossos pés ficavam pendurados no vazio infecundo entre a cadeira e o chão, com as costas retas e alinhadas, como se a Terra que nos ensinavam fosse lisa e direita, e não cheia de covas e curvas como a areia da praia.
A minha colega, a Ana Rita, pegou na lapiseira, e com a pontinha metálica começou a desmontar uma a uma, todas as peças e parafusos do seu relógio, até que a bracelete, o visor, os ponteiros e os restantes órgãos do relógio, novinho em folha, ficaram espalhados na secretária, como numa mesa de dissecação.
A professora não gostou do aparato. E a minha parceira levou um ralhete enquanto eu fiquei quieta e calada, não fosse o ralhete entornar-se em cima de mim também, mas achei injusto. Afinal que mal tinha ela querer ver o interior do relógio? Se calhar estava só a tentar perceber como funcionava o tempo, a decompor as horas e os minutos e os segundos, a tentar perceber o tempo por dentro.
Quando a escola terminava, eu reparava que a Ana Rita ficava muitas vezes à espera do pai ou da mãe, em separado, como se fossem ponteiros distintos, ao contrário de mim, que seguia para casa com o pai e a mãe juntos, num carro só. Lembro-me de passar às vezes, à porta da escola, depois de ter ido ao ballet ou à música e de a ver lá, ainda à espera. Como se o tempo do pai e da mãe da Ana Rita estivesse distraído e se esquecesse de avançar. Como um relógio avariado… Mesmo assim a professora não gostou quando viu em cima da mesa os parafusos dispersos do relógio, como pensamentos sem ordem. Como frases sem sentido. O relógio sem sentido.
Eu nunca desmontei relógios, mas gostava de desmanchar flores. Tinha-lhes um amor tão profundo que precisava de as entender por dentro. No jardim da minha avó havia uma variedade de plantas, cores e formas, e de vez enquanto eu colocava-as sobre a tijoleira do terraço e fazia uma espécie de biópsia, dissecava-as em pétalas, rasgava os caules, abria folhas ao meio, observava os tecidos. Queria entender de onde vinha o cheiro, a beleza indescritível que possuíam, e que me fazia querer penetrar nelas, atravessá-las, conhecê-las com todos os sentidos.
Uma vez o impulso de devorar uma planta brilhante e carnuda foi tão forte que a trinquei, a querer experimentar com os dentes o amor que ela me provocava. O resultado foi: língua inchada, vermelhão, bolhas, ardor na boca, vómitos e uma corrida relâmpago ao hospital, consequência de um ligeiro envenenamento, travado a tempo pela velocidade a que o meu pai conduziu o carro e o médico me administrou o medicamento, enquanto eu sorria de língua roxa e encortiçada: podia até estar nauseada, mas tinha provado o mistério da flor. Agora pelo menos, conhecia-lhe o sabor.
Recordo-me que, em criança, o meu primo gostava de experimentar a magnífica desmontagem e desarrumação das ferramentas do meu avô, com a mesma excitação e entusiasmo, para descobrir uma miríade de parafusos, peças, caixinhas, tampas e pedaços metálicos sem fim, como se fosse o garimpeiro do segredo das coisas. Já a minha irmã, arrancava as cabeças às bonecas, para espreitar o que se passava lá dentro (cresceu e tornou-se psicóloga. Continua a espreitar para dentro das cabeças).
A curiosidade é sempre uma forma de amar o desconhecido. À minha frente o miúdo da praia, está agora encostado ao chapéu-de-sol, enquanto a mãe resoluta, insiste em montar o brinquedo de volta. Reparo que ele tem na mão um pequeno objeto, que segura às escondidas. Talvez seja o busílis, a peça-chave que queria encontrar: o coração do brinquedo, que guardou enquanto a mãe diligente tenta desenterrar da areia as peças em falta, qual arqueóloga minuciosa, para repor a ordem geométrica.
O miúdo olha para mim enquanto aperta a peça em falta dentro da mão. Eu meto os dedos nos lábios… “Shhh.” Pisco-lhe o olho. Não vou contar.
Já em crescida, continuei a tentar abrir, a compreender e a dissecar a estranheza do desconhecido, aquilo que se esconde naqueles cujas cores e formas amo com sofreguidão, e procuro entender a partir de dentro. Para perceber o que compõe o sorriso que soltam; para ver os parafusos que fazem girar os olhos quando num instante se escondem; a mecânica do trejeito do ombro que cai triste e quero segurar ou afagar; para espreitar o interior do peito, da nuca, para escavar, para entrar, para ver melhor.
Continuo a nutrir este interesse cirúrgico pelas coisas que me provocam amor, a querer explorar e desvendar o labirinto interior, por vezes numa expedição desenfreada onde uma lanterna curiosa não chega para encontrar tudo o que esconde a escuridão de paisagens que permaneceram fechadas e húmidas durante muito tempo, sem visitas nem intrusos.
Pode ser uma expedição infindável essa de mergulhar no outro, porque as formas do labirinto não se esgotam e quanto mais as abrimos mais elas se estendem num abismo de sombras, recantos, e esconderijos. Há geografias e sítios a que não conseguimos, nem podemos chegar. Só imaginar.
E há alturas, em que nas expedições de ir ao fundo das coisas e das pessoas, também se desmancham partes do arqueólogo, desmancha-se o coração — relógio impreciso, como quando uma criança parte o brinquedo por o ter manejado bruscamente, euforicamente, com demasiada força, sujeitando o material a impactos desmedidos.
E lá o tentamos consertar, fixar, colar, arranjar, reparar, com o pescoço torto, dorido, com as mãos e os pulsos virados para dentro, a tentar que os olhos alcancem o próprio peito, como um alfaiate a costurar-se a si próprio, na posição de bicho-de-conta, que se fecha para tentar ver o que se passa dentro, a fazer contas impossíveis.
Nestas alturas valem-nos as mãos e os olhos dos amigos, que na reparação dos corações, mesmo que não dotados de cursos de medicina nem de cardiologia, se tornam mestres do restaurar e desencravar, apontam peças em falta, esquecidas, recuperam roscas e anilhas que fazem toda a diferença. Metem o brinquedo de volta no sítio, como a mão que chega de fora para mostrar o óbvio: que por vezes ficarão a faltar peças, perdidas debaixo de um canto qualquer, que levarão algum tempo a encontrar, ou nunca serão repostas.
Mas com certeza aprendemos mais sobre a máquina. Como quem procura ao mistério da felicidade dentro do brinquedo.
Diz o apaixonado e apaixonante Rubem Alves, que todos: “Continuamos crianças. E todos nós temos o nosso saco de brinquedos. A fala somos nós. Abrindo o saco. E despejando os brinquedos. O que vemos é a imagem da pessoa amada, mas o que imaginamos são os brinquedos que julgamos guardados dentro dela. O mais importante e bonito do mundo é isto: as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas. Elas vão sempre mudando.”