Saudades de Penélope e de Dánae, dois mitos fundadores num terminal de transportes | Livro


Um arquitecto, um escultor, um fotógrafo e um editor encontram-se num jardim – e um livro nasce. Nuno Brandão Costa, Francisco Tropa, André Cepeda e André Tavares acolheram, esculpiram, fotografaram e editaram Dánae e Penélope. Trata-se do registo, quase um foto-livro, do nascimento e inscrição de dois grupos escultóricos de arte pública no Terminal Intermodal de Campanhã (TIC), no Porto, uma obra projectada pelo arquitecto Nuno Brandão Costa, que foi inaugurada em Julho de 2022, e pontuada, um ano depois, com quatro Penélopes e duas Dánae criadas pelo escultor Francisco Tropa.



Francisco Tropa inspirou-se numa cópia da escultura Saudade, de Soares dos Reis, para criar as suas Penélopes
André Cepeda

O livro, uma nova edição Dafne, foi já apresentado no Porto em três ocasiões, duas delas com visitas guiadas ao jardim fronteiro ao TIC. “Por entre os sussurros de pretendentes ansiosos, as esculturas de Francisco Tropa povoam os caminhos de um novo terminal de camionagem”, diz o texto da contracapa de Dánae e Penélope, um livro que – e esta é a primeira nota improvável – praticamente dispensa a palavra, dando o espaço todo à fotografia de André Cepeda.

“Foi uma decisão do editor, acertada connosco, e que nos agradou”, dizem escultor e fotógrafo ao PÚBLICO. “Eu acompanhei grande parte do trabalho do Francisco, fui com ele ao atelier, às fábricas e às oficinas para fotografar como as peças foram feitas. O livro tem a minha linguagem, mas o interessante é sermos dois artistas a dialogar com a obra de um arquitecto, e também com um editor”, acrescenta André Cepeda, fotógrafo que, com a chancela Dafne, publicou já outro trabalho com Nuno Brandão Costa: São João de Deus (2019).

Penélope, a mulher que pacientemente esperou o regresso de Ulisses, e Dánae, a princesa virgem que Zeus fecundou com um fio de chuva de ouro, são duas figuras da mitologia grega. “São mitos fundadores da nossa civilização que as pessoas reconhecem facilmente”, diz Francisco Tropa, esclarecendo ser este, de resto, um tema que tem ocupado a sua atenção. E quando Nuno Brandão Costa propôs o seu nome à Câmara Municipal do Porto para a realização das esculturas para o terminal de Campanhã, não desperdiçou a oportunidade de a ele voltar. Mesmo se sabia que a arte pública se reveste de uma particular responsabilidade, por se tratar de algo que tem de interpelar “toda a gente que passa”, não apenas o público que escolhe ir a uma galeria de arte.

No corredor do TIC, quatro Penélopes em bronze, quase em tamanho natural, sobre plintos de betão; e no jardim contíguo, duas Dánae, fontes também de bronze a jorrar água que eternamente se escoa, compõem esta primeira experiência de arte pública no Porto do artista nascido em Lisboa.

A base da sua visão de Penélope, Francisco Tropa foi buscá-la, curiosamente, a uma cópia da escultura Saudade (1878), de Soares dos Reis. “Interessou-me aqui a figura melancólica da espera”, diz, lembrando também que toda a gente reconhece aquela obra pela posição do corpo e, especificamente, “pela torção do pescoço”. Foi essa marca que o escultor quis sublinhar, em quatro múltiplos em que inverteu a modelagem normal de uma estátua: “Seguindo a ideia das bonecas russas”, moldou sucessivamente o oco do interior até ao limite do reconhecimento da torção. “A ideia foi encher o vazio, tornar visível a parte que está aprisionada no interior da escultura”, explica o escultor, e daí nasceram as suas Penélopes de linhas abstractas.

Já as Dánae resultam também de outra forma de abstracção, da “geometrização do mito” através de duas fontes que figuram o feminino, que é também o de “uma virgem que dá à luz sem o acto de concepção, por isso muito próximo do imaginário cristão”.

Num livro que dá espaço pleno, fotográfico, à inscrição da arte pública numa obra de arquitectura de serviço público, também surpreende que a capa, em vez de retratar as esculturas ou as formas mais convencionais daquele equipamento rodoviário, nos faça olhar, subir (ou descer) uma escada povoada pelos utentes do terminal.



A escultura Dánae é uma “geometrização do mito” desta figura da mitologoa grega
André Cepeda

“Quisemos fugir à imagem óbvia da escultura e da arquitectura e mostrar antes como o lugar foi já apropriado pelas pessoas”, justifica André Cepeda, realçando que “ali é o corpo humano que é interessante registar”, nesse lugar que vai sendo revivificado pela vegetação de plátanos que está a crescer em volta da arte.



Capa de Dánae e Penélope
DR



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