Vamos fingir | Opinião | PÚBLICO


Vamos fingir que o Irão não estava em negociações sobre o seu programa nuclear desde 2015, que, entretanto, os EUA abandonaram. Vamos fingir que não existem dezenas de bases militares norte-americanas encostadas às fronteiras do Irão. Vamos fingir que Israel não tem praticado o maior crime de genocídio da era moderna, depois do III Reich. Vamos fingir que Israel não atacou o Irão. Vamos fingir que Israel não detém mais de 90 ogivas nucleares. Vamos fingir que os EUA não são um país com centenas de ogivas nucleares e, por isso, inatacável. Vamos fingir que os EUA não lançaram duas bombas nucleares no Japão. Vamos fingir que as armas nucleares israelitas não estão fora do controlo da Agência Internacional de Energia Atómica e do Núcleo de Pesquisa e Actividades em Energia Nuclear. Vamos fingir que não sabemos que, se o Irão já tivesse armas nucleares, seria inatacável. Finjamos ainda que não sabíamos que o Irão estaria disposto a negociar a possibilidade de controlo do seu programa de enriquecimento de urânio sob a égide de um consórcio internacional, desde que em território iraniano. Finjamos que nos é indiferente que alguns países se arroguem o direito a definir quem pode ou não pode ter armas nucleares. Finjamos que há países melhores do que outros e moralmente superiores.

Continuemos a fingir. Vamos fingir que os EUA não pretendem o controlo do estreito de Ormuz. Vamos fingir que os EUA não têm interesse no subsolo iraniano. Vamos fingir que Israel não tem pretensões expansionistas. Vamos fingir que o projecto do Grande Israel (território a estender-se ao Líbano, Jordânia, parte da Síria; Egipto, parte do Iraque e Arábia Saudita, como já se vê nas fardas de alguns soldados da FDI) não está em curso. Vamos fingir que Israel e EUA não estão coligados para dominar todo o Médio Oriente a médio prazo, como resposta aos BRICS e em obstrução às relações comerciais com Rússia e China. Vamos fingir que as forças armadas de Israel não são forças armadas, mas uma força de defesa. Vamos fingir que Gaza não se assemelha a Guernica e ao gueto de Varsóvia.

E continuemos a fingir. Vamos fingir que a NATO não é uma organização terrorista credenciada pelos EUA e países europeus. Vamos fingir que a Europa Ocidental não abana a causa ao dono norte-americano. Vamos fingir que as agências financeiras e os conteúdos de formatação informativa não estão indexados à Bloomberg. Vamos fingir que a NATO não cometeu crimes de guerra na ex-Jugoslávia, usando munições de urânio empobrecido. Vamos fingir que não existem ainda na Sérvia pessoas que, expostas a partículas radioactivas nos anos 1990, sofrem danos renais, malefícios no aparelho reprodutivo e impacto a nível cancerígeno.

E que o fingimento seja completo. Vamos fingir que a Rússia não invadiu a Ucrânia. Vamos fingir que Putin não tem estabelecido relações diplomáticas minimamente cordatas com o Presidente Trump. Vamos fingir que a Rússia não tem o Irão como aliado. Vamos fingir que a agência russa para a energia nuclear, a Rosatom, não gere uma das centrais nucleares no Irão, que Israel está inibido de atacar. Vamos fingir que a NATO não pulverizou um dos países mais desenvolvidos de África, a Líbia. Vamos fingir que a NATO e a Rússia não estilhaçaram a Síria e que a NATO não arrasou o Afeganistão. Vamos fingir que a NATO não é sanguinária. Vamos fingir que Portugal não tem quaisquer responsabilidades ao ceder a Base das Lajes aos EUA, para fins bélicos, ao arrepio do Direito Internacional. Vamos fingir que o Presidente e primeiro-ministro portugueses não sabiam de nada.

Finalmente, finjamos que os nossos comentadores e opinadores não são cínicos quando afirmam, como o fez recentemente Francisco Mendes da Silva, que “a guerra de Israel contra o Irão é uma guerra justa”, mesmo que à revelia do Direito Internacional (que é isso?), ou que o que aconteceu no dia 7 de Outubro de 2023 foi uma “chacina indiscriminada, sem hesitação nem remorso e uma vertigem genocida” e que o que acontece em Gaza (há quantos dias?) “é só uma batalha, conduzida em termos injustos; uma guerra justa”. E finjamos que atiradores israelitas não disparam sobre pessoas nos ajuntamentos de ajuda humanitária. Ah, e finjamos que, quando Mark Rutte (secretário-geral da NATO) assevera que os EUA não violaram a lei internacional durante os bombardeamentos ao território iraniano, ele tem razão. Finjamos sempre que um bombardeamento não é a violação de uma lei nem de um país.

Bom, finjamos que estamos todos de acordo em que o mundo se divide em boas e más pessoas. E finjamos que Netanyahu (e cada membro da sua súcia) é uma boa pessoa e que ele mesmo reza ao lado de rabinos. E que Trump é uma boa pessoa e é proposto até para Nobel da Paz pelo Paquistão (a piada da semana). E que Putin é uma boa pessoa. E que Khamenei é uma má pessoa por ser iraniano. Finjamos finalmente que a hipocrisia não existe.

À hora a que escrevo, o Irão acaba de atacar uma base militar norte-americana sediada no Qatar, o que pode ditar a liquidação deste país. Matéria para novos fingimentos e muitas mistificações.



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